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O

HOMEM

INSENSATO

 

“Insensato, esta noite hão de reclamar a tua alma” Lucas 12:20.

 

Gostaria de partilhar convosco a leitura duma história pequenina e dramática, muito importante nas suas implicações e significativa nas suas conclusões. É a história dum homem que, dentro dos conceitos modernos, seria considerado como uma pessoa que tinha vencido na vida. Jesus, no entanto, chamou-lhe insensato.

 

A figura central do drama é um “certo homem rico” que decidiu construir grandes celeiros novos, porque as colheitas da sua herdade tinham sido tão ricas que já não tinha onde guardá-las. “Aqui guardarei todo o meu trigo e os meus bens”, disse ele, “e depois direi à minha alma: agora descansa, come, bebe e diverte-te”. Deus, porém avisou-o: “Insensato, esta noite hão de reclamar a tua alma!” E assim foi. No auge da sua prosperidade, morreu.

 

Meditemos sobre este homem. Se ele vivesse hoje, todos o considerariam como “um tipo esperto”. Abundaria em prestígio social e em importância, e seria decerto um dos raros privilegiados dentro da estrutura do poder econômico. E, contudo, um camponês da Galiléia ousou chamar-lhe insensato.

 

Não foi simplesmente por ser rico que Jesus o chamou insensato. Nunca condenou propriamente a riqueza, mas o abuso que dela fazemos. Como qualquer outra energia, o dinheiro é amoral, e tanto pode servir para o bem como para o mal. É certo que Jesus ordenou ao jovem rico: “Vende tudo quanto tens”, mas, neste caso, como disse o dr. George H. Buttrick, Jesus receitava um remédio individual e não fazia um diagnóstico universal. Nada há de inerentemente vicioso na riqueza, assim como na pobreza nada há de inerentemente virtuoso.

 

Jesus não condenou este homem por ter sido desonesto na maneira de ganhar o seu dinheiro. Aparentemente, adquirira-o com o esforço do seu trabalho e com a experiência e a visão dum homem de negócios competente. Porque seria então insensato?

 

Era insensato porque confundira os fins para que vivia com os meios de que vivia. A estrutura econômica da sua vida absorvera-lhe o destino. Cada um de nós vive em dois mundos diferentes, um interior e outro exterior.

 

O interior é o mundo das coisas espirituais, cuja expressão nos é dada pela arte, a literatura, a moral e a religião. O exterior consta dum conjunto de invenções, técnicas, máquinas e instrumentos, de que depende a nossa maneira de viver. Incluem-se aqui as nossas casas, o nosso carro, os fatos que vestimos, os bens que adquirimos, enfim, toda a parte material necessária às nossas vidas. Mas existe sempre o risco de substituir os fins da nossa vida pelos meios de que vivemos e deixar que o mundo interior seja absorvido pelo exterior. O homem rico foi insensato porque não soube distinguir os meios dos fins, nem o contexto da sua vida com o do seu destino. Consentiu que a vida espiritual fosse submergida pela vida material.

 

Isto não significa que o lado exterior das nossas vidas não seja importante. É nosso privilégio, e também nosso dever, procurar os meios necessários à nossa subsistência. Só uma religião inconsciente poderia desinteressar-se do bem-estar econômico do homem. A religião sabe que um corpo torturado pela fome, ou obcecado pela falta de um abrigo, destrói a alma. Jesus conhecia a necessidade que temos do alimento, do vestuário, do abrigo e também da estabilidade econômica. Disse-o em termos claros e concisos: “O vosso Pai sabe o que vos é necessário” (Mateus 6:8). Mas Jesus também sabia que o homem não se contenta, como os cães, com alguns ossos econômicos, e que a sua vida interior é tão importante como a exterior; por isso disse a seguir: “Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mateus 6:33). A tragédia do homem rico foi a de ter procurado primeiro os meios e deixar que a finalidade da sua vida fosse absorvida por eles.

 

Quanto mais enriquecia materialmente, mais pobre ficava em espírito e em inteligência. Talvez fosse casado, mas não soubesse amar a mulher. É natural que lhe oferecesse muitos presentes caros, mas não pudesse dar-lhe o amor e a afeição que ela desejaria. É possível que tivesse filhos e os não soubesse apreciar. Teria talvez bem arrumados na biblioteca livros bons e antigos, que nunca lera, ou a possibilidade de ouvir boa música sem nunca o ter feito. O espírito desse homem não se abria para o pensamento dos poetas, profetas ou filósofos. Merecia bem o seu título de “insensato”.

 

Foi também insensato porque não conseguiu perceber que dependia dos outros. O seu solilóquio compunha-se aproximadamente de sessenta palavras, das quais as mais correntes eram “eu” e “meu”; tantas vezes as empregou que perdera já a capacidade de pronunciar “nós” ou “nossos”. Vítima do cancro do egoísmo, esqueceu que a riqueza particular depende sempre da riqueza pública. Falava como se pudesse cultivar campos ou construir celeiros sem a ajuda de ninguém. Não reconhecia a sua qualidade de herdeiro dum vasto tesouro de idéias e obras, para os quais haviam contribuído tanto os vivos como os mortos. Quando um indivíduo ou uma nação desconhece essa interdependência demonstra uma trágica insensatez.

 

O significado desta parábola aplica-se nitidamente à crise do mundo atual. Toda a máquina produtora do nosso país fabrica uma tal abundância de alimentos que temos também de construir maiores celeiros e gastar mais de um milhão de dólares por dia para armazenar os excedentes. De ano para ano, perguntamos: “Que hei de fazer, pois não tenho onde guardar a minha colheita?”. Li a resposta nos rostos de milhões de homens e mulheres esfomeados que habitam a Ásia, a África ou a América do Sul; li a resposta na espantosa miséria do Delta do Mississipi e na trágica instabilidade dos desempregados das cidades industriais do Norte. Que havemos de fazer? A resposta é simples: dar de comer a quem tem fome, vestir os nus e socorrer os que sofrem. Onde guardaremos as nossas colheitas? Mais uma vez, a resposta é fácil: podemos guardá-las no estômago construído de milhões de filhos de Deus que vão à noite para a cama sem terem comido. Podemos empregar os nossos vastos materiais na abolição da miséria do mundo.

 

Todas estas coisas demonstram algo de fundamental na interdependência dos homens e das nações. Todos nós, tendo ou não consciência disso, estamos eternamente em débito para com outras pessoas, conhecidas ou desconhecidas. Ninguém acaba de almoçar sem ficar a dever qualquer coisa a mais de meio-mundo. Quando, de manhã, nos levantamos da cama e vamos para a casa de banho, servimo-nos da esponja que um indígena do Pacífico forneceu; Lavamos-nos com um sabonete fabricado por um francês; a toalha foi importada da Turquia. Depois, à mesa, bebemos café que vem da América do Sul ou chá da China, ou cacau africano. Antes de sairmos para o emprego, já dependemos de quase todo o mundo.

 

No seu verdadeiro sentido, toda a vida é “inter-relacionada”. Todos os homens inevitavelmente apanhados pela rede da mutualidade e amarrados nas malhas dum mesmo destino. Aquilo que afeta diretamente alguém, afeta, indiretamente, toda a gente. Eu nunca posso ser aquilo que devo ser, sem que tu sejas aquilo que deves ser; assim como tu também não podes ser o que deves, sem que eu seja aquilo que devo. Esta é a estrutura “inter-relacionada” da realidade.

 

O homem rico não viu isto. Julgou poder viver num mundo limitado, de que só ele fosse o centro. Era o individualista levado ao excesso. Foi, realmente, o eterno insensato!

 

Jesus chamou a esse homem insensato por ele ter esquecido que dependia de Deus. Falava como se fosse ele a comandar as estações do ano, a prover à fertilidade do solo, a regular o processo natural das chuvas e do orvalho ou a dirigir o nascer e o pôr-do-sol. Julgava, sem ter a noção disso, que era o Criador e não a criatura.

 

Este louco egocentrismo tem sido desastroso na história da humanidade. Algumas vezes encontra a sua expressão teórica na doutrina materialista, que sustenta poder explicar a realidade em termos de movimento de matéria; a vida, como “um processo fisiológico com um significado fisiológico”; o homem, como ocasional acidente provocado pela cega deslocação de prótons e elétrons; o pensamento, como produto eventual da matéria cinzenta; e os acontecimentos históricos, como a ação do conjunto da matéria e do movimento provocado pelo princípio da necessidade. O materialismo tanto se opõe ao ateísmo como ao idealismo, porque nele não há lugar para Deus nem para ideais eternos.

 

Esta filosofia materialista conduz inevitavelmente a um destino sem rumo, num mundo intelectualmente sem sentido. Acreditar que a pessoa humana é o resultado dum encontro fortuito de átomos com elétrons, é tão; absurdo como acreditar que um macaco, ao carregar, eventualmente no teclado duma máquina de escrever possa, por simples acaso, criar uma peça shakespeariana. Pura fantasia! Seria bem mais sensato dizer, como o físico Sir James Jean, que “o universo parece estar mais próximo duma grandiosa concepção do que duma grande máquina”, ou então, como o filósofo Arthur Balfour, que dizia: “Já hoje conhecemos demasiadamente bem a matéria para podermos ser materialistas”. O materialismo é uma chama tênue que se apaga ao sopro dum pensamento amadurecido.

 

Outra tentativa para diminuir a importância de Deus encontra-se no humanismo ateísta, filosofia que deífica o homem, afirmando que a humanidade é Deus e o homem a medida de todas as coisas. Muitos homens modernos que perfilham esta doutrina sustentam, como Rousseau, que a natureza é essencialmente boa. Só nas instituições existe o mal e, se conseguíssemos abolir a pobreza e a ignorância, tudo seria perfeito. Foi dentro deste exuberante otimismo que nasceu o século XX. Os homens acreditavam que a civilização lhes facultaria um paraíso terrestre. Habilidosamente, Herbert Spencer adaptou a teoria de Darwin sobre a evolução à idéia predominante do progresso mecânico. Os homens convenceram-se de que havia uma lei sociológica do progresso, tão válida como a lei física da gravitação.

 

Cheio de otimismo, o homem moderno mergulhou no domínio da natureza e saiu de lá com conhecimentos científicos e processos técnicos que revolucionaram completamente o mundo. As realizações científicas foram maravilhosas, tangíveis e concretas. Ao assistir a este espantoso desenvolvimento científico, o homem moderno exclamava:

 

A ciência é meu pastor; nada me pode faltar.

Ela me leva a prados de água fresca

refaz a minha alma nas águas repousantes.

Nenhum mal me mete medo.

Pois que a ciência está ao pé de mim

consolam-me o seu báculo e bordão.

Paráfrase do Salmo 22.

 

As aspirações do homem já não se voltavam para Deus nem para o Céu. O pensamento agora cingia-se a ele próprio e à terra. Parodiando de forma estranha a prece do Senhor, poderia dizer: “Irmão nosso que estais na terra, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino e que a vossa vontade se faça na terra porque já não há Céu”. Os que dantes recorriam a Deus a fim de solucionarem os seus problemas pessoais, viraram-se agora para a ciência e para a tecnologia, convencidos de que possuíam os instrumentos necessários para singrar na nova sociedade.

 

Deu-se então a explosão deste mito. Atingiu o paroxismo nos horrores de Nagasaki e Hiroshima e na crucial ferocidade das bombas de cinqüenta megatóns. Compreendeu-se então que a ciência podia proporcionar a força física mas que esta, sem a força espiritual a controlá-la, conduziria inevitavelmente à destruição cósmica. Ainda hoje são verdadeiras as palavras de Alfredo, o Grande: “O poder nunca é um bem, a menos que o seu detentor seja bom”. Precisamos de alguma coisa mais do que a ciência para nos sentirmos apoiados espiritualmente e dirigidos moralmente. A ciência, quando guiada pelo espírito de Deus, pode ser o instrumento que ajuda o homem a alcançar a maior segurança física, mas, quando afastada de Deus, pode também transformar-se numa arma perigosíssima que nos precipita no caos. Porquê enganarmo-nos acerca do progresso mecânico ou da capacidade do homem em se salvar a si próprio? Ergamos antes os olhos ao céu, donde nos vem o verdadeiro auxílio. Só assim os progressos da ciência moderna poderão ser uma bênção, em vez duma maldição.

 

Sem dependermos de Deus, todos os nossos esforços se reduzem a cinzas e transforma-se em escuridão o sol mais brilhante. Sem o Seu espírito que ilumine as nossas vidas, apenas encontraremos o que G. K. Chesterton chamava “curas que não curam, benefícios que não beneficiam, soluções que não solucionam”. “Deus é o nosso refúgio e a nossa força, mostrou-se nosso amparo nas tribulações” (Salmo 45:2).

 

Infelizmente, o homem rico nada disto viu. Como tantos outros do século vinte, tão ocupado estava com os grandes negócios e com trivialidades, que se esqueceu de Deus. Dava infinita importância ao que era transitório e manifestava um exagerado interesse pelo que era de importância mínima.

 

Depois de ter acumulado a sua grande fortuna e no momento exato em que os seus interesses prosperavam, e o seu palácio era o assunto do dia, o homem rico experimentou aquilo que é o irredutível denominador comum de todos os homens: a morte. O fato de ter morrido nessa determinada ocasião empresta a esta história um certo travo irônico e dramático, mas o significado essencial da parábola, tivesse ele atingido a idade de Matusalém, seria sempre igual. Se não tivesse morrido, fisicamente, já antes haveria morrido espiritualmente; a paragem do coração era apenas o anúncio tardio duma morte já antes consumada. Morrera quando não soube distinguir os meios de que vivia dos fins para que vivia, e quando não reconheceu a sua dependência tanto dos outros como de Deus.

 

Não representará a civilização ocidental este “homem rico”? Rica de bens e de recursos materiais, a medida do êxito anda ligada quase inextricavelmente ao desejo desmedido da aquisição. São, de fato, maravilhosos os recursos de que dispomos para viver mas há, porém, alguma coisa que falta: aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, mas não conseguimos aprender a simples arte de vivermos unidos como irmãos. A abundância não nos trouxe a paz de consciência nem a serenidade de espírito. Um escritor oriental descreve em cândidos termos este nosso dilema:

 

“Chamam aos seus mil inventos materiais ‘economia de trabalho’ e, contudo, estão permanentemente ‘ocupados’. À medida que sua mecanização se multiplica, mais lhes cresce a fadiga, a ansiedade, o nervosismo e a insatisfação. Quanto mais têm mais querem, e onde quer que estejam sentem sempre a necessidade de estar noutro lado. Possuem máquinas para extrair a matéria em bruto (...), máquinas para a fabricar (...), máquinas para transportar, máquinas para varrer e limpar o pó, para transmitir mensagens, para escrever, para falar, para cantar, para recitar, para votar, para coser (...) e centenas de outras tantas que produzem tantas outras centenas de coisas para eles e, contudo, são os homens mais enervados, mais sobrecarregados do mundo (...). Os seus inventos não economizam trabalho nem arranjam maneira de salvar as almas. São como esporas que os estimulam a criar novas máquinas e novos processos para os ocupar ainda mais” (Abraham Mitrie Rihbany, Wise Men from the East and from the West, 1922).

 

Isto é uma verdade pungente, e diz-nos alguma coisa sobre a civilização ocidental que ultrapassa o preconceito faccioso dum escritor do Oriente, invejoso da prosperidade ocidental. Não podemos fugir à acusação. Os meios de que vivemos distanciam-se muito dos fins para que vivemos, e o poder científico passa à frente do poder espiritual: teleguiamos mísseis e não sabemos guiar os homens. Como esse tal homem rico, desprezamos insensatamente a nossa vida interior e exaltamos a exterior. Deixamos que as condições da nossa vida absorvam a própria vida. A nossa geração não terá paz enquanto não aprendermos de novo que “a vida de um homem não consiste na abundância das coisas que possui” (Lucas 12:15), mas no recôndito daquele tesouro espiritual “de onde o ladrão não se aproxima e que a terra não corrói” (Lucas 12:30).

 

A nossa esperança duma vida criadora reside na capacidade de reintegrar a finalidade espiritual da nossa vida no caráter pessoal e na justiça social. Sem um novo despertar moral e espiritual, seremos destruídos pelo abuso dos nossos próprios instrumentos. A nossa geração não pode fugir à pergunta do Senhor: De que servirá ao homem possuir todo o mundo exterior (aviões, luz elétrica, automóveis e televisão), se perder o interior, isto é, a sua própria alma?