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A PANCADA

DA

MEIA-NOITE

 

“Se algum de vós tiver um amigo e for ter com ele à meia-noite e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, pois me chegou de viagem um amigo meu e não tenho que lhe servir” (Lucas 11:5-6).

 

Embora esta parábola se refira ao poder da oração persistente, também pode servir como base para meditação sobre os problemas contemporâneos e sobre o papel da Igreja em relação a eles. Na parábola, é meia-noite; também no nosso mundo é meia-noite e a escuridão é tão grande que mal enxergamos o caminho.

 

Na ordem social, é meia-noite. No horizonte internacional, as nações andam empenhadas numa contenda colossal e violenta a fim de alcançarem a supremacia. Numa só geração, assistimos a duas guerras mundiais e as nuvens de outra guerra acumulam-se assustadoramente. O homem de hoje possui armas atômicas e nucleares que, em poucos segundos, podem destruir as maiores cidades do mundo. Mas prosseguem na corrida ao armamento e as experiências nucleares continuam a explodir na atmosfera, ameaçando poluir o ar que respiramos com O veneno da radioatividade. Acabarão estas circunstâncias e estas armas por aniquilar a raça humana? Quando bateu a meia-noite na ordem social, a gente do passado voltou-se para a ciência em busca de auxílio. Não nos admiremos; muitas vezes ela nos salvou. Quando era meia-noite na limitação física e na incapacidade material, foi a ciência que nos trouxe o conforto material e físico. Quando era meia-noite na ignorância e na superstição, foi a ciência que nos iluminou, esclarecendo e libertando os nossos espíritos. Quando vivíamos na meia-noite das pestes e das moléstias, foi ainda a ciência que, por meio da cirurgia, da higiene e dos remédios maravilhosos nos proporcionou a alegria da saúde física, prolongando as nossas vidas e contribuindo para uma maior segurança e bem-estar. É pois natural que recorramos à ciência quando os problemas deste mundo são tão horríveis e abomináveis.

 

Mas a ciência, infelizmente, não nos pode agora sal- var porque o próprio cientista anda perdido na tenebrosa meia-noite da nossa época. É de fato a própria ciência que agora nos fornece os meios para um possível suicídio universal. Por isso o homem moderno enfrenta uma triste e temível meia-noite, na ordem social.

 

Esta meia-noite na vida exterior e coletiva do homem anda a par com a meia-noite da sua vida interior. É meia-noite na ordem psicológica. A paralisia do medo obsidia constantemente as pessoas; o nosso céu mental está carregado das nuvens pesadas da ansiedade e depressão, e nunca houve, em qualquer outro momento da história, tanta gente psiquicamente perturbada. Os serviços de psiquiatria dos hospitais estão cheios, e os psicólogos mais em voga são hoje os psicanalistas. Os best-sellers sobre psicologia são, por exemplo, os seguintes livros: Man Against Himself, The Neurotic Personality of Our Times e Modern Man in Search of a Soul. Sobre religião são livros como Peace of Mind ou Peace of Soul. O padre mais popular é aquele que prega do púlpito sermões apaziguadores sobre “Como ser Feliz” ou “Como podemos descontrair-nos”. Alguns foram quase tentados a alterar o mandamento de Jesus e a dizer “Ide por toda a parte, conservai o vosso sangue frio e farei de vós pessoas normais”. Isto demonstra bem que é meia-noite dentro das vidas dos homens e das mulheres.

 

É também meia-noite na ordem moral. Quando chega esta hora, as cores mal se distinguem e apenas sombras cinzentas se destacam. Os princípios morais também mal se distinguem; para o homem moderno, o bem e o mal absolutos são relativos ao comportamento da maioria, aos costumes e ao gosto ou desagrado dum determinado grupo. Aplicamos inconscientemente ao campo ético e moral a teoria da relatividade que Einstein destinou ao universo físico.

 

A meia-noite é a hora em que os homens procuram desesperadamente obedecer a um décimo primeiro mandamento: “Não vos deixes apanhar”. Segundo a ética da meia-noite, o pecado mais importante é o de ser apanhado e a principal virtude é a de conseguir fugir. Não faz mal mentir, desde que se minta com habilidade; não faz mal roubar, desde que a pessoa que rouba tenha a categoria suficiente para transformar o roubo em peculato quando se deixa apanhar. Mesmo o ódio é permitido, se esse ódio for disfarçado com aparências de amor e se apresentar como tal. A teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte tem sido substituída pela filosofia da sobrevivência do mais esperto. Esta mentalidade destruiu os conceitos morais e aumentou a meia-noite da degenerescência moral.

 

No nosso mundo de hoje, tal como na parábola, ouve-se na escuridão da meia-noite o som de uma pancada. Milhões de pessoas batem à porta da Igreja. A lista de membros da Igreja é maior do que nunca; no nosso país, há cento e quinze milhões de pessoas que, pelo menos, são filiadas nalguma igreja ou sinagoga. Isto representa um aumento de 100% desde 1929, enquanto o aumento da população foi de 31%.

 

Algumas pessoas que visitaram a Rússia Soviética, onde a política oficial é ateia, contam que as igrejas daquele país, não só estão cheias de gente, como também o número dos que assistem tende a aumentar. Harrison Salisbury, num artigo do New York Times, informa que há grande preocupação no meio oficial comunista quanto ao interesse crescente sobre a religião e a Igreja da parte da juventude. Depois de quarenta anos de esforços gigantescos para suprimir a religião, a hierarquia do partido comunista encontra-se subitamente perante o fato de milhões de pessoas irem bater à porta da Igreja. Este aumento não deve, porém, ser considerado com exagerado otimismo; não devemos confundir índices altos com forças espirituais. O jumboism, como alguém lhe chamou, é o falso padrão com que se medem forças positivas. Um aumento em quantidade não indica automaticamente um aumento em qualidade, e uma comunidade maior não representa, necessariamente, uma maior fidelidade a Cristo: são geralmente as pequenas minorias dedica das que contribuem para melhorar o mundo. Mas embora este aumento de paroquianos não refletia necessariamente o concomitante aumento de princípios éticos, há hoje milhões de pessoas que sentem que a Igreja oferece a resposta à confusão profunda que reina nas suas vidas. Ela ainda continua sendo o abrigo familiar onde se acolhe o viajante da meia-noite, a única casa que se mantém onde sempre esteve, e onde o homem que viaja de noite tem oportunidade de entrar ou não. Há quem resolva não entrar. Mas todos os que chegam e batem à porta, anseiam desesperadamente por um pouco de pão que os sacie.

 

Três são os pães que o forasteiro pede. Deseja o pão da fé. Os homens duma geração fértil em tremendas decepções perderam a fé em Deus, a fé no homem e a fé no futuro. Muitos sentem o que William Wilberforce sentia quando dizia em 1801: “Não ouso casar, tão incerto vejo o futuro», ou então como William Pitt, em 1806: “À nossa roda pouco mais há do que ruína e desespero”. Acabrunhada pelas desilusões, muita gente reclama o pão da fé.

 

Também existe uma enorme necessidade do pão da esperança. No princípio deste século, as pessoas não tinham fome deste pão. Quando apareceram os primeiros telefones, automóveis e aeroplanos, sentiam-se possuídas dum otimismo esfuziante. Adoravam o templo do progresso inevitável e viam em cada nova realização científica o meio de atingirem a mais alta perfeição. Veio em seguida uma série de acontecimentos trágicos, que demonstrou o egoísmo e a corrupção do homem, manifestando com assustadora nitidez a razão das palavras de Lord Acton: “o poder tem tendência a corromper e quando ele é absoluto a corrupção é absoluta” (Essays on Freedom and Power, 1948). Esta terrível depressão foi a causa da maior crise de otimismo da História. Para muita gente, nova ou velha, a luz da esperança desvaneceu-se e tristemente caiu num sombrio pessimismo, concluindo que a vida não tinha qualquer sentido. De acordo com o filósofo Schopenhauer, achavam que a vida era uma dor infinita com um fim doloroso, ou uma tragicomédia sempre igual e sem qualquer alteração no guarda-roupa ou no cenário. Outros gritavam ainda, como Macbeth, de Shakespeare, que:

 

a vida é um conto

dito por um idiota, cheio de som e fúria,

mas que nada significa.

 

Mas até nos momentos inevitáveis em que desesperam de tudo, os homens sabem que não podem realmente viver assim e, no meio do seu desespero, imploram o pão da esperança.

 

Também existe uma imensa necessidade do pão do amor. Todos desejam amar e ser amados. Todo aquele que não é amado sente que não conta e no nosso mundo contemporâneo muita coisa aconteceu que dá ao homem a sensação de a nada pertencer. Ao viver num mundo que se tornou opressivamente impessoal, muitos de nós sentimos que pouco mais somos do que números. Ralph Borsodi, na deprimente descrição dum mundo em que os números substituíam as pessoas, escreve que a mãe moderna não passa, geralmente, dum caso de maternidade nº 8434, enquanto o filho, depois de registrado e de recolhidas as suas impressões digitais, se torna no nascituro nº 8003; o funeral nas grandes cidades é um depósito na Casa Mortuária B com flores e decorações de 2ª classe, em que os ofícios são celebrados pelo pregador nº 14 e a seleção nº 174 é cantada pelo cantor nº 84. Atordoado pela tendência em reduzi-lo a um simples artigo dum vasto código, o homem busca desesperadamente o pão do amor.

 

Quando o homem da parábola bate à porta do amigo e lhe pede três pães, recebe esta impaciente resposta: “Não me incomodes; agora a porta está fechada e os meus filhos já estão comigo na cama; não posso levantar-me para tos dar”. Quantos não terão tido semelhante desapontamento ao baterem à porta da Igreja, quando chega a meia-noite! Há milhões de Africanos que pacientemente lá têm ido bater à procura do pão da justiça social, e sempre se fez de conta que os não viam ou lhes foi dito que voltassem mais tarde, o que, na maioria dos casos, significa nunca mais. Milhões de pretos americanos, sôfregos do pão da liberdade, batem sem parar à porta das chamadas igrejas brancas, mas são quase sempre recebidos com fria indiferença ou com flagrante hipocrisia. Até os próprios chefes religiosos da raça branca, que sinceramente desejam abrir a porta e facultar o pão, se mostram, por vezes, mais prudentes do que corajosos, e mais dispostos a seguir o caminho da conveniência do que o da ética. Ser a própria instituição criada para arrancar o homem à meia-noite da segregação racial, a que participa e fomenta a manutenção dessa mesma meia-noite, é uma das mais vergonhosas tragédias da História.

 

Durante a tenebrosa meia-noite da guerra houve homens que bateram à porta da Igreja implorando o pão da paz e a quem a Igreja muitas vezes desapontou. Que provará mais tragicamente a ineficácia da Igreja nos problemas mundiais do nosso tempo, do que a sua atitude perante a guerra? Num mundo enlouquecido por paixões chauvinistas ou por especulações imperialistas, a Igreja, ou endossou essas atividades, ou manteve um espantoso silêncio. As igrejas nacionais, durante as duas últimas guerras, funcionaram como lacaios às ordens do governo, aspergindo água benta sobre barcos de guerra ou cantando ao lado dos poderosos exércitos: “Praza a Deus dar-nos munições!”. Quantas vezes o mundo, cheio de tristeza e reclamando com desespero a paz, viu a Igreja sancionar moralmente a guerra! E os que se dirigiram à Igreja em busca do pão da justiça econômica ficaram abandonados na decepcionante meia-noite da miséria. Tantas vezes a Igreja tem alinhado ao lado das classes privilegiadas e defendido o status quo, que nem sempre de boa-vontade responde à pancada da meia-noite à sua porta. Foi o caso da Igreja ortodoxa na Rússia, que tão ligada estava à ordem estabelecida e tão inextricavelmente confundida com o despótico regime czarista, que não foi possível acabar com a corrupção política nem com o sistema social sem também acabar com a igreja.

 

É este o fim de toda a organização eclesiástica que se alia “às coisas como estão”.

 

É preciso lembrar à Igreja que ela não é senhora nem serva do Estado, mas sim a consciência dele. Tem o dever de o criticar e de o orientar sem nunca se tornar para ele num instrumento. Se não recuperar o seu zelo profético, a Igreja transformar-se-á num insignificante agrupamento social, sem qualquer autoridade moral ou espiritual. Se não participar ativamente na luta pela paz e pela justiça econômica e racial, trairá a lealdade de milhões de pessoas e por toda a parte se dirá que atrofiou a sua missão. Mas se, pelo contrário, a Igreja conseguir libertar-se das algemas da estagnação e, retomando a consciência da sua grandiosa missão histórica, falar e agir denodada e insistentemente em termos de justiça e de paz, poderá então inflamar a imaginação e a alma dos homens e insuflar nelas o amor ardente pela verdade, pela justiça e pela paz. Longe ou perto, os homens poderão reconhecer na Igreja a grandiosa associação de amor que faculta aos forasteiros perdidos da meia-noite a luz e o pão.

 

Quando aludo à tibieza da Igreja, não omito o fato da chamada Igreja negra também ter desapontado, muitas vezes, os homens da meia-noite. Digo sempre a “chamada” Igreja negra porque, idealmente, não pode haver igrejas brancas ou negras. Quando, para sua eterna vergonha, os cristãos brancos introduziram o sistema da segregação racial dentro das igrejas e infligiram inúmeras humilhações aos fiéis negros, estes tiveram de organizar as suas próprias igrejas. Dois tipos de igreja negra falharam na provisão do pão. Uma queimada pelo emocionismo, e a outra, gelada pelo classicismo. A primeira reduz a devoção a um entretenimento e põe maior ênfase no volume do que no conteúdo, confundindo espiritualidade com musculatura. O perigo nesta igreja é o dos seus membros sentirem mais a religião nas mãos e nos pés, do que nos corações e nas almas. Quando é meia-noite, não encontram nela a vitalidade e a doutrina válida que alimente as suas almas esfomeadas.

 

O outro tipo de igreja negra, que também não satisfaz o viajante da meia-noite, desenvolveu um sistema de classe e vangloria-se da sua importância, da categoria dos seus membros e do seu exclusivismo. Nesta igreja, o culto é frio e os sermões pouco mais do que uma homilia sobre assuntos correntes. Se o pastor se alonga um pouco a falar de Jesus Cristo, os membros da comunidade consideram que ele atraiçoa a função do púlpito. Quando o coro canta um spiritual negro, vêem-no como uma afronta à sua posição social. É um tipo de igreja que ignora tragicamente que o exercício do culto representa uma experiência social em que pessoas de todos os níveis sociais, vêm, em conjunto, afirmar a sua unidade perante Deus. Pela limitada educação que possuem, ou ignoram os homens da meia-noite, ou dão-lhes, quando muito, o pão endurecido pelo gelo do mórbido sentimento de classe.

 

Vemos na parábola que, depois da decepção inicial, o homem continua a bater à porta do amigo. A sua teimosa insistência, a sua persistência, consegue persuadir, finalmente, o amigo a abrir-lhe a porta. Quando é meia-noite, muitos homens continuam a bater à porta da Igreja, mesmo depois de ela os ter desapontado, porque sabem que lá dentro está o pão da vida. Hoje a Igreja é intimada a proclamar o Filho de Deus, Jesus Cristo, como esperança do homem para todos os seus complexos problemas pessoais e sociais. Muitos continuaram a vir em busca de soluções para os problemas da vida. Há muitos jovens, perplexos ante as incertezas do futuro, confundidos pelas decepções e desiludidos pelas ambigüidades da História, que vêm bater à porta da Igreja: alguns foram arrancados às escolas ou carreiras e atirados para o serviço militar. Devemos dar-lhes o pão fresco da esperança e incutir-lhes a convicção de que Deus tem poder para extrair o bem do mal. Outros andam torturados por uma sensação de culpa, cônscios de vaguearem na meia-noite do relativismo ético ou de cederem à doutrina da afirmação pessoal. Temos de os conduzir até Cristo, que lhes dará o pão do perdão. Outros ainda dos que batem, são os que andam atormentados pelo medo da morte, à medida que se encaminham para o acaso da vida. Temos de lhes facultar o pão da fé na imortalidade, para que se convençam de que a vida é um mero período embrionário que precede um novo despertar.

 

A meia-noite é uma hora muito difícil quando falta a fé. A palavra mais inspirada que a Igreja pode dizer, é que a meia-noite não dura sempre. O forasteiro cansado que à meia-noite pede pão, o que realmente pretende é que a madrugada chegue; a nossa eterna mensagem de esperança é que há de chegar. Os nossos antepassados escravos sabiam-no. Nunca ignoraram a existência da meia-noite, porque o chicote do dono ou o mercado onde as famílias se dispersavam, lá estava para lhes lembrar aquela realidade. Enquanto meditavam na angustiosa escuridão da meia-noite cantavam:

 

Ah!, ninguém sabe as dores que eu tenho visto; Glória, Aleluia!

Às vezes estou de pé, às vezes abatido,

Sim, meu Senhor!

Às vezes quase por terra caio

Sim, meu Senhor!

Ai, ninguém sabe as dores que tenho visto

Glória, Aleluia!

De Deep River, por Howard Thurman, 1955.

 

Envolvidos por uma meia-noite de incerteza, mas certos de que o dia chegaria, cantavam:

 

O que me alegra é o mal não durar sempre

Ó meu Senhor, ó meu Senhor, que hei de eu fazer?

 

A sua crença inabalável na madrugada mantinha neles a fé viva entre as mais áridas e trágicas circunstâncias.

 

A certeza da madrugada nasce da certeza de que Deus é bom e justo. Todo aquele que acredita nisso sabe que as contrariedades da vida não são decisivas nem eternas. Caminha na escuridão da noite com a alegre certeza de que todas as coisas se conjugam para o bem dos que amam a Deus. A meia-noite mais vazia de estrelas pode ser o prenúncio da madrugada dum grande acontecimento.

 

Quando começou a boicotagem aos autocarros de Montgomery, no Alabama, estabelecemos um transporte voluntário para levar e trazer as pessoas dos empregos. Durante onze meses esse sistema funcionou extraordinariamente bem. Nessa altura, o Mayor Gayle deu ordem aos serviços camarários para que fossem tomadas as providências necessárias a fim de acabar com o nosso sistema de transporte ou com outro qualquer que dependesse da boicotagem aos autocarros. A intervenção foi marcada para uma terça-feira, no dia 13 de Novembro de 1956.

 

Na nossa habitual reunião semanal, convocada na véspera desse dia, coube-me a mim a responsabilidade de prevenir as pessoas de que o nosso carro seria possivelmente apreendido. Sabia que durante quase um ano elas tinham agüentado, mas poderia agora pedir-lhes para irem e virem dos empregos a pé? E se o não conseguisse, teria de admitir que o protesto havia falhado? Pela primeira vez, quase hesitei em aparecer diante delas.

 

Quando chegou a noite, arranjei coragem suficiente para lhes dizer a verdade. Procurei apenas, no fim, incutir-lhes um pouco de esperança. Disse-lhes: “Agüentamos todos estes meses na ousada esperança de que Deus está do nosso lado, e a experiência dos dias passados justifica maravilhosamente essa fé. Esta noite precisamos de acreditar que há de haver uma saída para este beco sem saída”. Senti, contudo, passar uma aragem fria de pessimismo sobre a assistência. A noite parecia mais escura do que muitas meia-noites; a luz da esperança esmorecia e a da fé parecia vacilar.

 

Poucas horas depois, a cidade acusava-nos, perante o juiz Carter, de termos organizado uma “empresa particular de transportes sem pagamento de imposto”. Os nossos advogados argumentaram com brilho que o car-pool era um transporte voluntário gratuito, organizado pelas igrejas negras. Era óbvio que a decisão do juiz Carter iria ser favorável à cidade. Nessa tarde, depois dum breve intervalo, notei uma agitação inusitada na sala das audiências, e chamaram o juiz Carter para outra sala. Os repórteres, excitados, corriam dum lado para o outro. A certa altura, um deles aproximou-se da mesa onde eu, principal defensor, estava sentado entre os advogados: “Aqui está a sentença que vocês esperavam”, disse ele. “Leia isto”.

 

Ansioso e esperançado, li o seguinte: “O Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos declara, por unanimidade, ser inconstitucional de hoje em diante a segregação nos autocarros de Montgomery, no Estado de Alabama”. Senti o coração bater de inefável alegria. A hora mais sombria da nossa luta tinha se transformado na nossa primeira hora de vitória. Lá no fundo da sala alguém gritou: “Foi Deus Todo Poderoso que falou de Washington!”.

 

Chegara a madrugada. O desapontamento, o desgosto e o desespero nascem à meia-noite; mas depois vem o dia. O Salmista diz: “Pela tarde vem o pranto, mas de manhã volta a alegria” (Salmos 29:6).

 

Esta fé adia as assembléias do desespero e empresta nova luz às sombrias câmaras do pessimismo.