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A PEREGRINAÇÃO

PARA A

NÃO-VIOLÊNCIA

 

Quando dos meus últimos anos de Teologia no seminário, empenhei-me com entusiasmo na leitura de várias doutrinas teológicas. Educado dentro duma estrita tradição fundamentalista, escandalizei-me, por vezes, quando a minha jornada intelectual enveredou por novos e complexos caminhos doutrinários; mas, contudo, foi sempre estimulante a peregrinação e facultou-me urna nova visão sobre a apreciação objetiva e a análise crítica, ao mesmo tempo que me arrancava ao meu sono dogmático.

 

O liberalismo proporcionou-me urna satisfação intelectual que eu não encontrara no fundamentalismo. Tão enamorado fiquei das idéias do liberalismo, que quase caí na armadilha de aceitar cegamente tudo o que ele continha. Estava inteiramente convencido da bondade natural do homem e do poder natural da razão humana.

 

A modificação básica do meu raciocínio deu-se quando comecei a duvidar dalgumas teorias ligadas à chamada Teologia liberal. Há certos aspectos do liberalismo de que espero naturalmente nunca deixar de gostar corno, por exemplo, a sua dedicação na procura da verdade, a sua insistência no espírito aberto e analítico, e a sua recusa em abandonar as principais luzes da razão. A contribuição que o liberalismo prestou ao criticismo filológico-histórico da literatura bíblica foi dum valor imenso e deve ser defendida com o maior ardor religioso e científico.

 

Mas comecei, porém, a duvidar da doutrina liberal sobre o homem. Quanto mais observava as tragédias da História e a desonrosa tendência do homem em escolher o caminho mais baixo, melhor percebia a profundidade e a força do pecado. A leitura das obras de Reinhold Niebuhr fez-me compreender toda a complexidade dos motivos humanos e a realidade do pecado, a todos os níveis da existência do homem. Reconheci, além disso, a complexa estrutura social que envolve o homem, e a realidade flagrante do mal coletivo. Percebi que o liberalismo fora todo ele demasiado sentimental em relação, à natureza do homem, e que tendia para um falso idealismo.

 

Comecei também a notar que o otimismo superficial do liberalismo em relação à natureza humana ignorara o fato do pecado obscurecer a razão, e quanto mais meditei sobre isso melhor pude ver como a nossa trágica inclinação para o erro pode encorajar-nos a racionalizar as nossas ações. O liberalismo esqueceu-se de demonstrar que a razão, por si só, pouco mais é do que um instrumento para justificar os meios de defesa do pensamento do homem. A razão sem a força purificadora da fé nunca consegue libertar-se de distorções nem de racionalizações.

 

Mas apesar de rejeitar alguns aspectos do liberalismo, nunca pude aceitar inteiramente a neo-ortodoxia. Embora visse nela um corretivo útil a um liberalismo sentimentalista, sentia que ela não trazia a solução adequada aos problemas fundamentais. Se o liberalismo tinha sido demasiado otimista, a neo-ortodoxia era, em contrapartida, pessimista de mais. A revolta da neo-ortodoxia foi longe de mais, não só no que respeita ao homem, como também noutros assuntos vitais. No seu esforço para salvaguardar a transcendência de Deus que, no liberalismo, tinha sido negligenciada por uma exagerada insistência na sua imanência, a neo-ortodoxia chegou ao extremo de apresentar um Deus oculto, desconhecido e “inteiramente outro”. Na sua revolta contra a ênfase dada pelo liberalismo ao poder da razão, a neo-ortodoxia caiu numa espécie de anti-racionalismo e semifundamentalismo, insistindo num biblicismo limitado e nada crítico. Considerei essa tendência inadequada, tanto para a Igreja como para a vida pessoal.

 

Assim, se o liberalismo me não satisfez quanto ao problema da natureza do homem, também não encontrei qualquer consolação na neo-ortodoxia. Estou hoje convencido de que a verdade acerca do homem não se encontra nem numa coisa nem noutra; ambas representam uma verdade parcial. Uma grande facção do liberalismo protestante definiu apenas o homem em termos da sua natureza essencial, da sua capacidade para o bem. A neo-ortodoxia procurou definir o homem apenas em termos da sua natureza existencial, da sua capacidade para o mal. O conhecimento adequado do homem não se encontra na tese do liberalismo nem na antítese da neo-ortodoxia, mas na síntese que reconcilia as verdades que ambas contêm.

 

Nos anos que se seguiram, adquiri uma opinião diferente da filosofia existencialista. O meu primeiro contacto com essa filosofia foi através da leitura de Kirkegaard e de Nietzsche. Mais tarde, estudei as obras de Jaspers, Heidegger e Sartre. Estes filósofos estimularam o meu raciocínio: embora os considerasse discutíveis, aprendi muito quando os estudei. Quando finalmente me dediquei ao estudo aprofundado das obras de Paul Tillich, fiquei convencido de que o existencialismo, não obstante o fato de ter caído demasiado na moda, tinha captado certas verdades fundamentais acerca do homem e da sua condição, que não podiam deixar de ser consideradas.

 

O conhecimento da “liberdade finita” do homem é uma das permanentes contribuições do existencialismo; e a sua percepção da sociedade e do conflito que a perigosa e ambígua estrutura da existência provoca na vida pessoal e social do homem atinge um significado especial na nossa época. O denominador comum do existencialismo, tanto no teísta como no ateísta, é o fato da situação existencial do homem estar alheada da sua natureza essencial. Revoltados contra o essencialismo de Hegel, todos os existencialistas sustentam que o mundo está fragmentado. A História é uma série de conflitos irreconciliáveis e a existência do homem está invadida pela ansiedade e ameaça da de perder todo o seu sentido. Embora nenhuma destas asserções existenciais represente a resposta cristã definitiva, há nelas muita coisa que o teólogo pode aproveitar para descrever a real condição da existência do homem.

 

Apesar do meu estudo formal ter incidido sobre teologia sistemática e filosofia, fui-me interessando cada vez mais pelas éticas sociais. Durante a minha juventude preocupei-me intensamente com o problema da justiça racial. Considerava a segregação tão racionalmente inexplicável como moralmente injustificável. Nunca pude aceitar ter de me sentar nos bancos de trás dum auto-carro ou no compartimento separado dum comboio. A primeira vez que me sentei atrás duma cortina, numa carruagem-restaurante, foi como se sentisse correr a cortina dentro de mim próprio. Aprendi também que o gêmeo inseparável da injustiça racial era a injustiça econômica. Observei que os sistemas de segregação exploravam tanto os pretos como os brancos pobres. Estas primeiras experiências tornaram-me profundamente consciente da diversidade de injustiças na nossa sociedade.

 

Mas só depois de ter entrado no seminário teológico, comecei a pensar seriamente no assunto e a tentar descobrir um método que eliminasse o mal social. Fui logo influenciado pela doutrina social cristã. Nos princípios doe 1950, li Christianity and lhe Social Crisis, de Walter Rauschenbusch, livro que deixou marcas profundas no meu espírito. Havia, evidentemente, alguns pontos em que eu discordava de Rauschenbusch. Sentia que ele fora uma vítima do “culto do progresso inevitável” do século dezenove, que o tinha arrastado para um incrível otimismo acerca da natureza humana. Além disso, notava-se nele uma perigosa tendência para identificar o Reino de Deus com um determinado sistema social, tentação essa a que a Igreja nunca deve sujeitar-se. Apesar, porém, destas falhas, Rauschcnbusch trouxe ao Protestantismo Americano um sentido de responsabilidade social que não devemos esquecer. A doutrina perfeita diz respeito ao homem completo, tanto à alma como ao corpo, tanto ao seu bem espiritual como ao seu bem-estar material. Uma religião que se interesse pela alma dos homens sem igualmente se preocupar com os bairros de lata que a pervertem, com as condições econômicas que a esmagam ou com as condições sociais que a arruínam, é uma religião espiritualmente moribunda.

 

Depois de ter lido Rauschenbuch, dediquei-me ao estudo sério das teorias sociais e éticas dos grandes filósofos. Durante esse período, quase desesperei do poder do amor na resolução dos problemas sociais. As filosofias do “oferece-a-outra-face” e “amai-os-vossos-inimigos” só poderiam ser válidas, julgava eu, quando se tratasse de conflitos entre indivíduos; mas quando o conflito se desse entre grupos raciais ou nações, seriam precisos outros processos mais realistas.

 

Ingressei então na vida e nos ensinamentos de Mahatma Gandhi, e à medida que lia as suas obras, ia ficando profundamente fascinado pela sua campanha da resistência não-violenta. O conceito gandhiano do satyagraha (satya significa “verdade” que é igual a “amor” e graha é “força” portanto satyagraha significa: verdade-amor ou amor-força), tinha uma enorme importância para mim. O meu cepticismo acerca do amor ia diminuindo gradualmente, à medida que mais profundamente estudava a filosofia de Gandhi; percebi, pela primeira vez, que a doutrina cristã do amor, operando através do método gandhiano da não-violência, seria uma das mais potentes e apropriadas armas par um povo oprimido lutar pela sua independência. Naquela altura, porém, era apenas intelectualmente que eu compreendia e apreciava aquela posição, sem qualquer idéia definida de a aplicar numa situação social concreta.

 

Quando, em 1954, fui como pastor para Montgomery, no Alabama, não me passava pela cabeça ver-me envolvido numa questão em que a resistência não-violenta seria aplicável. Depois de viver quase um ano naquela comunidade, a boicotagem aos autocarros começou. Os negros de Montgomery, cansados das humilhações constantes que lhes eram infligi das nos autocarros, decidiram manifestar a sua decisão de liberdade numa ação de não-cooperação em massa. Tinham percebido finalmente que era mais honroso para eles andarem dignamente a pé, do que viajarem humilhados, nos autocarros. Quando se iniciou o protesto, vieram ter comigo para lhes servir de “porta-voz”. Ao aceitar essa responsabilidade, o meu espírito, consciente ou inconscientemente, recorreu ao Sermão da Montanha e ao método gandhiano da resistência não-violenta. Foi a luz deste princípio que sempre nos guiou durante o movimento. Cristo fornecia o espírito e a motivação; Gandhi fornecia o método.

 

A experiência em Montgomery contribuiu mais para esclarecer as minhas idéias acerca da não-violência do que todos os livros que tinha lido antes e, à medida que os dias iam passando, mais me convencia da força da não-violência. Tornou-se para mim mais do que um método a que eu aderia intelectualmente; tornou-se compromisso dum determinado rumo de vida. Muitas coisas relacionadas com a não-violência que, intelectualmente, não tinha conseguido esclarecer, resolviam-se agora ao plano da ação prática.

 

O privilégio de ter ido à Índia influiu muito na minha maneira de ser, pois foi estimulante observar pessoalmente os resultados espantosos da luta não-violenta pela independência. Os resíduos do ódio e do rancor, que geralmente ficam depois duma campanha, não se notavam em qualquer parte da Índia, e percebia-se que existia uma amizade mútua entre os indianos e os ingleses, baseada numa perfeita igualdade.

 

Não pretendo dar a impressão de que a não-violência realiza milagres de repente. Não é com facilidade que as almas dos homens se modificam e se libertam de preconceitos e sentimentos irracionais. Quando os desprivilegiados reclamam a liberdade, os privilegiados reagem sempre de entrada com azedume e resistência; e até quando a reclamação é feita em termos não-violentos, a resposta inicial é sempre substancialmente a mesma. Estou certo de que muitos dos nossos irmãos brancos, em Montgomery e em todo o Sul, ainda continuam irritados com os chefes negros, apesar destes terem tentado o caminho do amor e da não-violência. Mas o acesso à não-violência influi sempre nos corações e nas almas de aqueles que a praticam. Empresta-lhes uma nova dignidade e fá-los descobrir uma força e uma coragem que eles antes ignoravam ter. E, finalmente, acaba por abalar a consciência do opositor, de forma a poder realizar-se a reconciliação.

 

Foi só recentemente que eu comecei a perceber a utilidade do método da não-violência nas relações internacionais. Embora não estivesse convencido da eficácia da guerra nos conflitos entre as nações, considerava que esta, nunca podendo ser um bem positivo, poderia, pelo menos, ser um bem negativo na medida em que evitasse a propagação e o desenvolvimento duma força do mal. Por muito horrível que seja, a guerra seria preferível à sujeição a um regime totalitário. Hoje considero que o poder destruidor das armas modernas afastou totalmente a possibilidade da guerra, mesmo quando esta represente um bem negativo. Se afirmamos que a humanidade tem o direito à sobrevivência, devemos procurar uma alternativa para a guerra e para a destruição. Nesta época de naves espaciais e de mísseis balísticos, só poderemos escolher entre a não-violência e a não-existência.

 

Não sou um doutrinador pacifista, mas tenho procurado adaptar um pacifismo realista que, dentro das circunstâncias, considera a posição pacifista como o mal menor. Não pretendo fugir aos dilemas morais do cristão não-pacifista, mas estou convencido de que a Igreja não pode ficar calada perante uma humanidade ameaça da pelo aniquilamento nuclear. Para a Igreja ser fiel à sua missão, tem de clamar pelo fim da corrida ao armamento.

 

Também alguns dos meus desgostos pessoais durante estes últimos anos contribuíram para modificar as minhas idéias. Sempre hesitei em mencionar estas experiências com receio de dar uma impressão errada, pois quando alguém chama constantemente a atenção dos outros para as suas preocupações e sofrimentos, arrisca-se a criar um complexo de mártir e a dar a impressão de querer atrair simpatias. É fácil centrarmo-nos nos nossos próprios sacrifícios, e por isso sinto sempre relutância em referir-me àqueles que faço. Só a influência que exerceram no meu espírito poderá justificar um pouco mencioná-los aqui. Dada a minha intervenção na luta pela liberdade da minha gente, poucos foram os dias de sossego que tive nestes últimos anos. Doze vezes estive preso nas cadeias de Alabama e Geórgia; a minha casa foi atacada duas vezes; raros foram os dias em que a minha família ou eu não fomos ameaçados de morte; fui vítima dum atentado quase fatal. Fui, portanto, no real sentido da expressão, afligido pelos temporais da perseguição. Devo confessar que por vezes me senti incapaz de suportar um fardo tão pesado e fui tentado a refugiar-me numa vida mais tranqüila e serena. Mas sempre que sentia essa tentação, havia qualquer coisa que fortalecia a minha energia. Aprendera que o fardo do Mestre se torna mais leve quando, precisamente, agüentamos o peso dele nos nossos ombros.

 

As minhas experiências pessoais também me ensinaram o valor do sofrimento imerecido. Quando as provocações começaram, logo compreendi que havia duas maneiras de reagir à situação, com rancor, ou tentando transformar o sofrimento em força criadora. Decidi optar por esta última. Reconhecendo a necessidade de sofrer, procurei fazer disso uma virtude. Fosse apenas para me libertar do rancor, tentei ver nas minhas próprias provações uma oportunidade para me transformar e melhorar aqueles que estão envolvidos na trágica situação atual.

 

Tenho vivido nestes últimos anos com a convicção de que o sofrimento imerecido é redentor. Há quem ainda considere a Cruz como um obstáculo e outros como uma loucura, mas eu creio que ela é, para além de tudo, a força de Deus na salvação social e individual. Tal como o Apóstolo Paulo, posso agora dizer humildemente, embora com orgulho: “Trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus”.

 

Também esses momentos angustiosos por que passei nestes últimos tempos me aproximaram mais de Deus.

 

Hoje, mais do que nunca, estou convencido da realidade dum Deus pessoal. Sempre acreditei na personalidade de Deus, mas, no passado, a idéia de um Deus pessoal significava apenas uma categoria metafísica que me satisfazia teológica e filosoficamente. Hoje tornou-se numa realidade viva, verificada nas experiências quotidianas da vida. Nestes últimos anos, Deus tornou-se profundamente real para mim. No meio de muitos dias e noites de solidão e tristeza, ouvi uma voz interior que me dizia: “Coragem, estarei contigo”; quando as cadeias do medo e as algemas da frustração quase anulavam os meus esforços, senti a força de Deus que transformava a fadiga do desespero em ligeiras asas de esperança. Tenho a certeza de que o Universo é regido por um desígnio de amor e de que, na sua luta pela justiça, o homem tem uma aliança cósmica. Existe uma força benigna por detrás das árduas aparências do Mundo. Dizer que este Deus é pessoal não significa fazer Dele um objeto definido junto de outros objetos ou atribuir-Lhe as limitações da personalidade humana, mas sim arrancar à nossa consciência o que ela contém de mais nobre e mais elevado e afirmar Nele essa existência perfeita. É um fato que a personalidade humana é limitada, mas a personalidade, como tal, não envolve limitações necessárias. Significa, simplesmente, consciência e orientação próprias. Por isso Deus, no sentido mais real da palavra, é um Deus vivo. Nele existem sentimento e vontade, correspondência aos mais profundos anseios do coração humano. Este Deus evoca e responde às nossas preces.

 

Esta última década foi um período muito agitado, mas, apesar das suas tensões e incertezas, algo de muito importante se está a processar. Os velhos regimes de exploração e opressão acabam e surgem outros novos, de justiça e de igualdade. É, de fato, uma grande época, esta em que vivemos e, por isso, não me sinto desanimado quanto ao futuro; admito, porém, que o otimismo fácil de ontem já não é possível e que, na crise mundial que hoje enfrentamos, nos mantemos muita vez de pé no meio das ondas agitadas do mar da vida. Mas todas as ; crises têm os seus perigos e as suas oportunidades; tanto podem provocar a salvação como a ruína. Num mundo sombrio e perturbado, o Reino de Deus pode ainda reinar no coração dos homens.