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O NOSSO DEUS

É PODEROSO

 

“Aquele que é poderoso para nos preservar das quedas” (Judas 24).

 

Na fé cristã integra-se a certeza de que existe no universo um Deus poderoso, capaz de grandes e extraordinárias obras na natureza e na história. Esta convicção é constantemente repetida no Antigo e no Novo Testamento. Teologicamente, ela está expressa na doutrina da Onipotência de Deus. O Deus que adoramos não é um Deus fraco e incompetente; pode deter gigantescas vagas de adversidade e reduzir prodigiosas montanhas de maldade. A proclamação vibrante da fé cristã é de que Deus é poderoso.

 

Há quem procure convencer-nos de que só o homem pode tudo. A tentativa para substituir o universo centrado em Deus por um centrado no homem, já não é nova. Nos tempos modernos, teve início durante o Renascimento e, conseqüentemente, na Idade da Razão, quando os homens começaram a sentir a pouco e pouco que Deus não era uma verba indispensável na contabilidade da vida. Durante aqueles períodos e, mais tarde, durante a revolução industrial na Inglaterra, surgiram outras dúvidas quanto à importância de Deus. O laboratório começou a substituir a Igreja e o cientista substituiu o profeta. Não foram poucos os que cantaram, juntamente, com Swinburne uma nova antífona: “Glória ao homem nas alturas, porque ele é o senhor de todas as coisas” (Hymn of Man).

 

Os praticantes dessa nova religião apontavam para os progressos espetaculares da ciência como justificação para a sua fé. A ciência e a técnica tinham dilatado o corpo do homem; o telescópio e a televisão aumentaram-lhe a visão; o telefone, a rádio e o microfone desenvolviam-lhe a voz e a audição; as pernas cresciam com o automóvel e o avião. Remédios maravilhosos prolongavam-lhe a vida. Todas estas realizações espantosas não garantiriam a capacidade humana? Deu-se, infelizmente, qualquer coisa que abalou a fé daqueles que tinham feito do laboratório "a nova catedral da esperança humana". Os instrumentos ontem adorados, são os que hoje contêm a morte cósmica e ameaçam lançar todos nós no abismo do aniquilamento; o homem não pode salvar-se a si próprio nem salvar o mundo. A menos que o Espírito de Deus o guie, a recente descoberta do poder científico pode transformar-se num monstro destruidor, no novo Frankenstein, que reduzirá a cinzas a sua vida terrestre.

 

Existem por vezes outras forças que nos fazem duvidar da capacidade de Deus. A brutal e colossal realidade do mal no mundo, a que Keats chamou “a gigantesca agonia do mundo”; as torrentes incontroláveis e os tornados que arrastam pessoas como sementes em campo aberto; as doenças, como a alienação mental, que atacam desde o berço certos indivíduos, reduzindo os seus dias a trágicos ciclos sem sentido; a loucura das guerras e a desumanidade bárbara de homem para homem; tudo isto nos leva a perguntar por que acontecem tais coisas se Deus as pode evitar. Este problema, nomeadamente o problema do mal, afligiu sempre o espírito do homem. Limitar-me-ei a responder com a afirmação de que grande parte do mal que experimentamos é causado pela insensatez e ignorância do homem, assim como pelo abuso que faz da sua liberdade. Para além disto, só poderei alegar que há, e sempre há de haver uma penumbra de mistério à roda de Deus. Aquilo que, de momento, se nos afigura como um mal pode conter um propósito que as nossas inteligências limitadas não compreendem. Apesar, pois, da presença do mal e das dúvidas que se escondem no nosso espírito, desejaríamos manter sempre a certeza de que o nosso Deus tudo pode.

 

Notemos, antes de mais nada, que Deus pode manter toda a vasta imensidade do universo físico. Também neste aspecto sentimos a tentação de considerar o homem como o verdadeiro senhor deste universo. Aviões a jacto, criados pelo homem, percorrem, em poucos minutos, distâncias que antes requeriam semanas de esforços complicados. Naves espaciais, criadas pelo homem, transportam cosmonautas através do espaço e velocidades fantásticas. Não teria sido Deus substituído no domínio da ordem cósmica?

 

Antes, porém, de nos deixarmos invadir por uma exagerada arrogância quanto à superioridade do homem, lancemos um olhar mais lúcido sobre o universo. Notamos logo que os instrumentos criados por nós quase se não movem em relação ao movimento do sistema solar, criado por Deus. Olhemos, por exemplo, para o fato da terra se mover à volta do sol tão rapidamente que o mais veloz dos jactos ficaria atrasado sessenta e seis mil milhas, logo na primeira hora duma corrida espacial; sete minutos depois do nosso lançamento, mais de oito mil milhas percorridas através do espaço! Consideremos agora o sol, que os cientistas dizem ser o centro do universo. A revolução da Terra à roda dessa bola de fogo realiza-se uma vez por ano, percorrendo 584.000.000 milhas à razão de 66.700 milhas por hora, ou seja, 1.600.000 milhas por dia. A esta velocidade estaríamos, num centésimo de segundo, a 1.600.000 milhas do local onde agora nos encontramos. O sol, que nos parece tão próximo, está a 93.000.000 milhas de distância da terra. Daqui a seis meses poderíamos estar do outro lado do sol, a 93.000.000 para além dele, e de hoje a um ano teríamos dado a sua volta completa e estaríamos já aqui de novo. Por isso, quando realizamos a expansão ilimitada do espaço - onde somos obrigados a medir a distância dos astros em anos-luz e onde os corpos celestes se deslocam a velocidades incríveis, não podemos deixar de olhar para além do homem e de afirmar que Deus é poderoso.

 

Notemos, ainda, que Deus pode dominar todas as forças do mal. Ao afirmarmos que Deus pode vencer o mal, admitimos a realidade deste. O Cristianismo nunca considerou o mal como ilusório, ou como erro do espírito mortal; tratou sempre com o mal como com uma força que possui realidade objetiva. Mas o Cristianismo também sustenta que o mal contém o germe da sua própria destruição. A História é simplesmente a história das forças do mal que avançam com um ímpeto aparentemente irresistível para serem depois venci das pelas forças da justiça. No mundo moral existe uma lei silenciosa, invisível, imperiosa, aparentada com as leis do mundo físico, que nos recorda que a vida opera num único sentido. Os “Hitlers” e os “Mussolinis” podem ter a sua época e, durante uns tempos, dispor dum poder enorme espalhando-se como raízes de árvores gigantescas, mas não tardam em ser arrancadas e cortadas como simples ervas daninhas.

 

Vítor Hugo, quando descreve nos Miseráveis a batalha de Waterloo, diz: “Seria possível a Napoleão ter vencido esta batalha? Respondemos que não. Porquê? Por causa de Wellington? Por causa de Blücher? Não: por causa de Deus. Napoleão era responsável perante o Infinito, e a sua queda tinha: sido decretada; vexara Deus. Waterloo não foi uma batalha; foi uma troca de posições do Universo”.

 

Waterloo, no seu sentido real, é o símbolo da derrota de todos os “Napoleões” e também um eterno aviso às gerações embriagadas pelo próprio poderio militar de que nem sempre ao longo da história a força faz o direito, nem o poder da espada vence o poder do espírito.

 

Pesava sobre a África e a Ásia um sistema cruel, conhecido pelo nome de colonialismo, mas, a certa altura, a lei silenciosa e invisível começou a exercer a sua ação. O Primeiro Ministro MacMillan disse: “Começou a soprar o vento das transformações”. O grande império colonial começou a desmoronar-se como um baralho de cartas, e nações independentes a emergir como oásis refrescantes no meio do calor ardente da injustiça. A independência, em menos de quinze anos, invadiu a Ásia e a África como uma torrente impetuosa libertando das cadeias destruidoras do colonialismo mais de 1.500.000.000 pessoas.

 

Também no nosso país um outro sistema mau e injusto, que se chama segregação, durante quase cem anos infligiu ao negro um sentimento de inferioridade, despojando-o da sua personalidade e negando-lhe o direito à vida, à liberdade e à felicidade. A segregação tem sido o grande flagelo dos negros e a vergonha da América. Mas também no nosso país, como à escala mundial, um vento transformador começou a soprar. Acontecimentos seguidos têm contribuído gradualmente para o fim do sistema da segregação. Hoje temos a certeza de que a segregação morreu; resta apenas saber quanto custará o enterro.

 

Estas grandes transformações não são meras iniciativas políticas ou sociológicas. Representam o fim de sistemas que nasceram na injustiça, que se criaram na desigualdade e cresceram na exploração. Representam a decadência inevitável de qualquer sistema que se baseie em princípios que se não harmonizem com as leis morais do universo. Quando as futuras gerações olharem para trás e estudarem os dias agitados e turbulentos em que hoje vivemos, verão a mão de Deus operando através da História para a salvação dos homens, e compreenderão que, para esse trabalho, Deus se serviu dos homens que tiveram a clarividência suficiente para perceber que nenhuma nação poderia sobreviver metade escrava e metade livre.

 

Deus pode vencer os males da História. Nunca o seu poder é usurpado. Se por vezes desesperamos com a lentidão dos progressos para o fim da discriminação, ou nos sentimos decepcionados com a prudência exagerada do governo federal, animemo-nos com o fato de que Deus é poderoso. No nosso caminho, tantas vezes solitário e difícil, para alcançarmos a liberdade nunca caminhamos sós; Deus caminha sempre conosco. Dentro da própria estrutura do universo, Deus estabeleceu umas certas leis morais absolutas; não podemos desafiá-las nem quebrá-las. São elas que nos quebrarão se lhes desobedecermos. As forças do mal podem conquistar, temporariamente, a verdade, mas por fim é ela sempre, que vencerá o conquistador. O nosso Deus é poderoso. Tinha razão James Russel:

 

“Sempre a verdade no patíbulo e o erro no trono, mas o patíbulo prepara o futuro e, para além do que é oculto. Está Deus na sombra, protegendo os seus” (The Presente Crisis).

 

Consideremos, finalmente, que Deus pode dar-nos os necessários recursos interiores para enfrentarmos as provações e as dificuldades da vida. Todos esbarramos na vida com circunstâncias que nos forçam a suportar o pesado fardo dos desgostos. A adversidade ataca-nos com ímpetos ciclônicos. Madrugadas luminosas transformam-se em noites escuras. As nossas maiores esperanças e os sonhos mais nobres desfazem-se.

 

O Cristianismo nunca ignorou estas experiências; são inevitáveis. Como as alterações rítmicas da natureza, a vida tem dias de verão cheios de sol e também os gelos do inverno. A dias de alegria indescritível, seguem-se outros da mais profunda tristeza. A vida contém períodos de abundância e períodos de fome. Quando chegam as horas sombrias, muitos exclamam com Paul Laurence Dunbar:

 

“Um bocado de pão e um canto onde dormir,

Um momento para sorrir e uma hora para chorar,

Uma gota de alegria para um vaso de dores,

e nunca é o riso mas as queixas que se dobram;

e é isto a vida!”.

Life.

 

O Cristianismo, ao mesmo tempo que admite os pesados problemas e os desapontamentos que deprimem, afirma que Deus pode dar.nos a força para os agüentar. Pode dar-nos o equilíbrio interior que nos mantém de pé entre os desgostos e as provações da vida. Pode dar-nos a paz interior no meio das tempestades. Essa estabilidade íntima que o homem crente possui é o legado mais importante que Cristo deixou aos seus discípulos. Não nos deixou recursos materiais nem fórmulas mágicas para nos preservar do sofrimento ou da perseguição, mas uma dádiva que dura eternamente: “Deixo-vos a paz:” (João 14:27), é a paz que vai além de todo o entendimento.

 

Há ocasiões em que julgamos poder prescindir de Deus, mas, quando chega o momento em que se desencadeiam as tempestades do desapontamento, sopram os ventos da desgraça ou sentimos em nós a violência da dor, a nossa vida emocional desfaz-se em pedaços se não possuirmos uma fé profunda e constante. Tanta frustração há no mundo por recorrermos a deuses em vez de recorrermos a Deus! Ajoelhamos diante do deus da ciência para apenas descobrirmos que ele nos deu a bomba atômica, causadora de terrores e ansiedades que a ciência nunca pode mitigar. Adoramos o deus do prazer, para apenas descobrir que as emoções cansam e as sensações são efêmeras. Curvamo-nos perante o deus do dinheiro, para simplesmente aprender que ele não pode comprar o amor nem a amizade, e que a sua divindade é bem incerta, num mundo sujeito a tantas depressões, como sejam as crises financeiras e os negócios infelizes. Estes deuses transitórios não podem salvar-nos nem trazer a felicidade ao coração humano.

 

Só Deus é poderoso. É a fé absoluta Nele que nós temos de encontrar de novo. Com ela podemos transformar vales sombrios e desoladores em caminhos luminosos de júbilo, e encher de nova luz as cavernas do pessimismo. Haverá alguém aqui que esteja a caminhar para o ocaso da vida e tenha medo daquilo a que chamamos morte? Por que tem medo? Deus é poderoso. Haverá aqui alguém à beira do desespero pela perda dum ente querido, porque um casamento se desfez um filho se desencaminhou? Por que há de desesperar? Deus pode dar-lhe a força para suportar o que não pode ser remediado. Haverá aí alguém aflito pela falta de saúde? Por que está nessa aflição? Venha o que vier, Deus é poderoso.

 

Quase a chegar ao fim da minha mensagem, gostaria de vos falar uma experiência pessoal. Os primeiros vinte e quatro anos da minha vida foram anos de plena satisfação; não tinha problemas importantes nem preocupações. Graças aos pais amigos que tive e que olhavam pelas minhas necessidades, entrei no liceu, na escola superior, formei-me em teologia e doutorei-me, sem sentir dificuldades. Só quando tomei parte ativa, como dirigente, no movimento de protesto contra a segregação nos transportes coletivos de Montgomery é que comecei a sofrer os embates da vida. Quase em seguida ao início do movimento de protesto, começamos a receber em casa telefonemas e cartas com ameaças. De entrada eram casos esporádicos, mas de dia para dia aumentavam. Julguei-os, a princípio, sem importância, atribuindo-os a obra dalguns exaltados aborrecidos por não recuarmos, mas à medida que as semanas passavam, percebi então que muitas das ameaças eram a sério. Comecei eu próprio a hesitar e a sentir medo.

 

Depois dum dia especialmente cansativo, voltei para casa tarde. A minha mulher já dormia e eu estava quase a adormecer, quando o telefone tocou. Uma voz irritada gritou “Ouça, seu negro. Já conseguimos de si quase tudo o que queríamos; se antes da próxima semana aparecer em Montgomery, arrepende-se”. Desliguei, mas não pude adormecer; era como se todos os temores caíssem de repente em cima de mim. Tinha atingido o ponto de saturação.

 

Levantei-me da cama e comecei a andar dum lado para o outro. Entrei, por fim, na cozinha e fui aquecer um bocado de café. Sentia-me quase disposto a desistir, e pus-me a pensar na maneira de desaparecer da cena, sem dar aspecto de cobardia. Exausto e sem coragem, decidi entregar o meu problema a Deus. Com a cabeça entre as mãos, curvei-me sobre a mesa da cozinha e rezei alto. Ainda tenho vivas na memória as palavras que nessa noite dirigi a Deus: “Tomei uma posição que julgo ser justa, mas tenho medo. A minha gente considera-me como seu chefe e se eu agora me apresentar diante deles sem ânimo nem coragem, acabarão todos por desistir. Atingi o limite das minhas forças; não posso mais. Cheguei a um ponto em que sozinho nada mais posso fazer”.

 

Senti nesse momento a presença de Deus, como nunca antes a tinha sentido. Foi como se ouvisse dentro de mim uma voz firme e calma que me dissesse: “Mantém-te do lado da justiça e da verdade e Deus estará sempre contigo”. Quase de repente o medo e a minha hesitação desapareceram. Senti-me disposto a enfrentar fosse o que fosse. A situação era a mesma, mas Deus concedera-me a tranqüilidade de espírito.

 

A nossa casa foi atacada três dias depois; embora pareça estranho, aceitei calmamente a ordem do ataque. A experiência que tivera com Deus emprestara-me novas energias e uma maior confiança. Sabia agora que Deus podia dar-nos o auxílio interior para enfrentar as tempestades e os problemas da vida.

 

Que esta certeza esteja sempre conosco. É ela que nos dá as forças para enfrentarmos as incertezas do futuro, e a energia para podermos prosseguir no caminho da liberdade. Quando as nuvens se acumulam sobre as nossas cabeças e as noites são mais sombrias do que nunca, lembremo-nos de que existe no universo uma Força benévola, cujo nome é Deus, que pode solucionar o que não tem solução, e transformar as noites mais sombrias do passado em luminosos dias do futuro. É esta a nossa esperança para podermos ser homens melhores. É este o nosso mandato para procurarmos realizar um mundo melhor.