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QUE É O HOMEM? |
“Que é o homem, para dele vos lembrardes? Que é o filho de Adão, para que vos ocupeis com ele? Entretanto, Vós o fizestes pouco inferior a um deus. De glória e honra o coroastes” (Salmos 8:4-5).
Toda a estrutura política, social e econômica da sociedade é determinada pela resposta a esta pergunta vital. O conflito entre o totalitarismo e a democracia baseia-se, de fato, no seguinte: será o homem uma pessoa ou uma coisa? Será uma peça insignificante na roda do Estado ou um ser livre e criador, capaz de responsabilidade? Esta interrogação é velha como a humanidade e nova como o jornal da manhã e, embora haja uma enorme concordância na pergunta, há enorme discordância na resposta.
Os que pensam puramente o homem em termos materialistas, alegam que ele é muito simplesmente um animal, um objeto insignificante na evolução constante do vasto organismo a que chamamos natureza, a qual é inteiramente inconsciente e impessoal. A sua vida completa pode ser explicada em termos de matéria em movimento. Este sistema de idéias afirma que o procedimento do homem é determinado fisicamente e que o espírito é um mero efeito do cérebro.
Muitos dos que professam esta concepção materialista são arrastados para um sombrio pessimismo. Estão de acordo com um escritor recente que diz que “o homem é um acidente cósmico, uma doença ainda incurável deste nosso planeta”, ou então, com Jonathan Swift, que escrevia: “O homem é a espécie de vermículo mais pernicioso e degradante que a natureza jamais permitiu que rastejasse na terra” (Viagens de Gulliver, viagem a Brobdingnag, Capítulo VI).
Outra resposta dada com freqüência à pergunta sobre “que é o homem?” é a do humanismo. Como não crê em Deus nem na existência de qualquer força sobrenatural, o humanista assegura que o homem é o exemplo mais elevado do ser, na evolução natural do universo. Contrariando o pessimismo do materialismo, o humanista professa um brilhante otimismo e exclama como o Hamlet, de Shakespeare:
What a piece of work is man! How noble in reason!
How infinite in faculties! In forms, in moving, how express
and admirable! In action how like an angel! In apprehension
how like a god! the beauty of the world! The paragon of animals!
Hamlet, Ato II, Cena 2
Há ainda os que procuram ser um pouco mais realistas e tentam reconciliar as verdades destes antagonismos evitando ambos os extremos. Sustentam que a verdade acerca do homem não se encontra na tese do materialismo pessimista nem na antítese do humanismo otimista, mas numa síntese mais alta. O homem não é o vilão nem o herói, mas, simultaneamente, ambas as coisas. O realista concorda com Carlyle em que “existem abismos dentro do homem que atingem as profundezas do inferno, e alturas que o levam aos mais altos céus, pois não é do homem que provém o céu e o inferno, ele o eterno milagre e o eterno mistério?”.
Há muitos séculos, o Salmista observou a infinita expansão do sistema solar. Olhou a beleza cintilante da lua e as estrelas suspensas como lanternas da eternidade. Ao notar as dimensões gigantescas e a vastidão dessa ordem cósmica, veio-lhe ao espírito uma dúvida familiar antiga: “Que é o homem?” A resposta manifesta uma verdade criadora: “Entretanto vós o fizestes pouco inferior a um deus, de glória e de honra o coroastes”. São as palavras deste Salmo que nos vão servir de meditação, a fim de tentarmos encontrar uma visão realista cristã acerca do homem.
Em primeiro lugar, a maneira de ver cristã reconhece no homem um ser biológico possuidor dum corpo físico, e portanto, neste sentido, um animal. Mas o Salmista diz: “Vós o fizestes pouco inferior a um Deus”. Não concebemos Deus como um ser corporal. Deus é o puro Espírito, que ultrapassa a categoria do tempo e do espaço. O homem, porém, sendo inferior a um deus, sofre as limitações do tempo e do espaço. Pertence à natureza e nunca pode desligar-se desse parentesco.
O Salmista prossegue, dizendo que Deus criou o homem dessa forma. Desde que isto seja verdade, nada há de essencialmente mau na sua natureza criada, pois vem no Livro do Gênesis que tudo o que deus fez era bom. Nada de derrogatório em ter um corpo, e esta afirmação é uma das coisas que distingue a doutrina cristã sobre o homem, da doutrina grega. Os gregos, sob o impacto de Platão, chegaram à conclusão de que o corpo era inerentemente mau e que a alma só quando liberta do corpo poderia atingir a sua maturidade completa. O Cristianismo, por outro lado, afirma que o princípio do mal está na vontade e não no corpo. O corpo, na idéia cristã, é sagrado e significante.
Qualquer que seja a doutrina sobre o homem, teremos sempre de nos preocupar com o seu bem-estar físico e material. Quando Jesus disse que nem só de pão vive o homem, não quis significar com isso que o homem pudesse viver sem pão. Como cristãos temos obrigação de não pensar apenas nas “mansões celestes”, mas também nos bairros de lata e nos ghettos destruidores da alma humana; não só nos caminhos do céu, “recendentes a leite e mel”, mas lembrarmo-nos de que há milhões de pessoas no mundo com fome. Toda a religião que se preocupa com a alma dos homens sem se importar com as condições sociais que a corrompem ou com as econômicas que a destroem, é uma religião inoperante e que necessita de sangue novo. Uma tal religião não reconhece que o homem é um animal com necessidades físicas e materiais.
Mas não podemos ficar por aqui. Alguns pensadores há que no homem não conseguem ver mais do que o animal. Os marxistas, por exemplo, que professam a teoria do materialismo dialético, pretendem que o homem é simplesmente um animal produtor, que provê às suas próprias necessidades e cuja vida é em grande parte determinada por forças econômicas. Outros ainda pretendem que a vida completa do homem é apenas um processo materialista, com um significado materialista.
Poder-se-á explicar o homem em termos tão superficiais? Poder-se-á explicar um gênio literário como o de Shakespeare, ou musical como o de Beethoven, ou artístico como o de Miguel Ângelo, em fórmulas materialistas? Poder-se-á explicar o mistério e o encanto da alma humana em termos materialistas? Poder-se-á explicar o gênio espiritual de Jesus de Nazaré em termos materialistas? Não, não pode ser; há algo no homem que a biologia e a química não podem explicar. O homem é mais do que um devaneio eventual de elétrons irrequietos.
Isto conduz-nos a um segundo ponto, que deve ser incluído em toda a doutrina cristã sobre o homem. O homem é um ser de espírito. Vai subindo pelos “degraus das suas concepções” até ao maravilhoso mundo das idéias. Escuta a sua consciência e ê lembrado das coisas divinas. Foi o que o Salmista quis significar, quando disse que o homem foi coroado de glória e de honra.
Esta faculdade espiritual empresta-lhe a capacidade única de viver em dois planos diferentes. Existe na natureza e acima dela; existe no espaço e no tempo, e também acima deles. Pode operar coisas que nunca outros animais inferiores poderão operar. O homem pode criar um poema e escrevê-lo; pode conceber uma sinfonia e compô-la; pode idealizar uma grande civilização e promovê-la. Essa capacidade evita a sua completa ligação com a natureza e o tempo. Pode ser um John Bunyan prisioneiro no recinto fechado da Prisão de Bedford, cuja inteligência transpõe as grades e produz The Pilgrim’s Progresso Pode ser um Handel, já perto do anoitecer da vida, quase fisicamente cego, e que ergue aos céus os olhos do seu espírito e compõe os alegres acordes e as doces melodias do grandioso Messias. É pela sua capacidade de raciocínio, pelo poder da memória e pelos seus dotes de imaginação que o homem transcende o tempo e o espaço. Tão maravilhosa como a estrela é a inteligência do homem que a estuda.
É o que a Bíblia nos quer dizer, quando afirma que o homem é feito à imagem de Deus. Diversos pensadores têm interpretado esta imago dei em termos de convivência, correspondência, razão e consciência. Uma manifestação exata da natureza espiritual do homem é a sua liberdade. O homem é homem porque é livre de agir dentro do âmbito do seu destino. É livre para deliberar, para decidir e para optar entre duas alternativas. Distingue-se dos animais pela liberdade de fazer o mal ou o bem, de seguir pela estrada mais elevada e mais bela, ou de enveredar pelo caminho tortuoso da mais abjeta depravação.
A fim de evitar que sejamos vítimas duma ilusão criada pela superficialidade, temos de dizer claramente que é um erro afirmar que o homem, por ter sido feito à imagem de Deus, é fundamentalmente bom. Pela prevalência da sua exagerada inclinação para o mal, o homem tem desfigurado terrivelmente a imagem de Deus.
Detestamos ouvir dizer que o homem é um pecador. Nada há de mais insultuoso para a vaidade do homem moderno. Tentamos desesperadamente procurar outras palavras, como erro da natureza, ausência do bem, conceito errado do espírito, para explicar o pecado do homem. Voltamo-nos também para a psicologia mais funda e tentamos anular o pecado atribuindo-o a conseqüências de conflito íntimo, de inibições ou de batalhas entre o id e o superego. Mas todos estes conceitos servem para nos lembrar que a absorvente natureza humana é uma trágica e tríplice alienação que isola o homem de si próprio, do seu próximo e do seu Deus. Existe uma corrupção na vontade do homem.
Quando diante do escrutínio de Deus pomos as nossas vidas a nu, somos levados a admitir que mentimos, apesar de conhecermos a verdade; que somos injustos, conhecendo o que é ser justo; que odiamos, quando sabemos que devemos amar; que, situados no alto da encruzilhada, escolhemos geralmente o caminho que mais baixo desce. “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas” (Isaías 53:6).
A condição pecadora do homem faz com que ele se afunde em tão profundos abismos na sua vida coletiva que Reinhold Niebuhr pôde escrever um livro intitulado Moral Man and lmmortal Society. O homem quando em coletividade, seja ela de grupo, tribo, raça ou nação, cai geralmente num barbarismo difícil de conceber mesmo nas espécies mais atrasadas. Podemos ver a manifestação dessa Sociedade Imoral na doutrina da supremacia dos brancos, que mergulha milhões de negros no abismo da exploração, e também nos horrores de duas guerras mundiais que deixaram os campos de batalha, empapados de sangue, dívidas nacionais maiores do que montanhas, homens arruinados psicologicamente e fisicamente, e multidões de viúvas e órfãos. O homem é um pecador que necessita da graça do perdão de Deus. Isto não significa pessimismo destrutivo; é realismo cristão.
Apesar da tendência da humanidade para viver a níveis baixos e degradantes, há sempre algo que lhe lembra não ter sido criada para isso. À medida que o homem rasteja na lama, há sempre qualquer coisa que lhe diz que ele foi feito para as estrelas. Quando humilha e despreza o seu irmão, há uma voz íntima que lhe diz que ele nasceu para a eternidade. A mão de Deus tem tanta força em nós que há sempre qualquer coisa que não nos deixa sentir bons quando procedemos mal, ou normais quando agimos anormalmente.
Jesus contou-nos a história dum rapaz que abandonou o seu lar em busca da vida e andou de terra em terra, de aventura em aventura, e de sensação em sensação sem nunca a descobrir e encontrando apenas frustração e perplexidade. Quanto mais se afastava da casa paterna, mais perto se sentia do desespero. Quanto mais fazia aquilo de que gostava, menos gostava daquilo que fazia. A jornada que empreendera, em vez de o conduzir à deleitosa terra da felicidade, conduzira-o a uma pocilga. Esta parábola é o eterno aviso de que o homem é criado para a casa do Pai e de que todas as excursões a terras distantes só lhe poderão trazer desilusão e saudade.
Esta parábola, graças a Deus, diz-nos ainda mais alguma coisa. O filho pródigo não estava em si quando abandonou a casa do pai ou quando imaginou o prazer como finalidade suprema da vida. Só quando regressou e voltou como filho, pôde sentir-se ele próprio outra vez. Encontrou então um Pai carinhoso que o esperava de braços abertos e com o coração cheio de alegria. Quando a alma volta à sua casa, há sempre nesta um enorme contentamento. O homem tem errado pelas terras distantes do secularismo, materialismo, fatalismo, sexualismo e injustiça racial. A civilização ocidental sofre da miséria moral e espiritual que essas grandes jornadas têm causado. Mas ainda não é tarde para regressar a casa.
O Pai celeste fala à atual civilização ocidental: “No afastado país do colonialismo, mais de um bilhão e seiscentos milhões de irmãos de cor têm sido politicamente dominados, economicamente explorados e totalmente despojados do seu valor. Reconsiderai e regressai à vossa casa, que é a da justiça, a da liberdade e a da fraternidade e, cheio de alegria, lá estarei para vos receber”. Com igual urgência também Deus fala à América: “No país distante da segregação e da discriminação, tendes oprimido dezenove milhões de vossos irmãos negros, tolhendo-os economicamente e arrastando-os para o ghetto; arrancastes-lhes o respeito próprio, assim como a sua dignidade pessoal, fazendo com que se sentissem completamente diminuídos e insignificantes. Voltai ao vosso verdadeiro lar, que é o da democracia, o da fraternidade e o da paternidade de Deus, e eu vos acolherei e concederei novas oportunidades para serdes uma grande nação”.
Que nós possamos perceber, como indivíduos e como nação, que fomos feitos para tudo o que é elevado, nobre e bom, e que a nossa verdadeira casa está na vontade de Deus. Escolhamos o caminho que conduz à abundância da Vida.
A cada homem abre-se um Caminho
e Caminhos, um Caminho,
e a Alta Alma sobe ao Caminho Alto
e a Baixa Alma desce ao Baixo
e no meio, nos planos nevoentos,
as outras almas vagueiam.
Mas a cada homem abre-se um Caminho,
um alto e outro baixo,
e a cada homem pertence decidir
o caminho para a sua alma.
The Ways, Selected Pems of John Oxenham, Charles L. Wallis
Deus permita que aprendamos a escolher o que nos eleva e possamos ser sempre e por toda parte considerados como homens coroados de glória e de honra.