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SONHOS

DESFEITOS

 

“Quando da minha viagem a Espanha espero ver-vos” (Romanos 15:24)

 

Um dos mais angustiosos problemas da nossa experiência humana é o de verificar como são poucos, se alguns houver, os que conseguem ver realizadas as suas esperanças mais queridas. As esperanças da nossa infância e as promessas da nossa maturidade são sinfonias incompletas. Um quadro célebre de Georges Frederic Watts representa a Esperança como uma tranqüila figura de mulher, sentada sobre o nosso planeta, a cabeça inclinada tristemente, a tanger a única corda inteira duma harpa. Haverá algum de nós que não tenha experimentado a agonia das esperanças perdidas ou dos sonhos desfeitos?

 

A carta de São Paulo aos Cristãos Romanos ilustra bem o vexatório problema do desfazer duma esperança. “Quando da minha viagem a Espanha, espero ver-vos”. Um dos seus maiores desejos era essa viagem a Espanha, onde esperava proclamar o evangelho de Cristo, e que se situava no extremo do mundo então conhecido. No regresso, tencionava encontrar-se pessoalmente com o valoroso grupo dos Cristãos romanos. Quanto mais próximo sentia esse privilégio, mais o seu coração rejubilava. Os seus preparativos concentravam-se agora na mensagem que iria levar à cidade capital de Roma e a Espanha, a parcela mais distante do Império.

 

Que enormes esperanças no coração de Paulo! Nunca, porém, satisfaria o seu desejo de ir a Roma nas condições que ambicionava. Esteve lá, de fato, mas como prisioneiro e fechado numa cela estreita por causa da sua intrépida fé em Jesus Cristo. Também não andou pelas estradas poeirentas de Espanha, nem lhe conheceu montes sinuosos ou a vida agitada dos seus portos do mar. Crê-se que foi condenado à morte e martirizado por amor de Cristo. A vida de Paulo é a trágica história dum sonho desfeito.

 

A vida mostra-nos muitas experiências semelhantes. Quem não terá desejado partir para uma Espanha distante, para um objetivo importante ou para uma brilhante realização, e depois se viu forçado a contentar-se com muito menos? Nunca caminhamos livremente pelas nossas estradas de Roma e são as circunstâncias que decretam a nossa prisão em celas apertadas. Temos inscrito nas nossas vidas um erro fatal, e corre através da história um veio de água irracional e imprevisível. Habitamos, como Abraão, a Terra da Promissão, mas não somos, como ele, “co-herdeiros da mesma promessa” (Hebreus 11:9). As nossas aspirações excedem sempre aquilo que conseguimos alcançar.

 

Depois de muitos anos de luta para conseguir a independência, Mahatma Gandhi assistiu a uma sangrenta guerra religiosa entre hindus e muçulmanos, e a conseqüente separação do Paquistão desfez o sonho duma nação unida, sonho que ele albergara em seu coração. Woodrow Wilson morreu antes de ver realizado o seu sonho da Sociedade das Nações. Quantos escravos negros da América não morreram sem conhecer a emancipação, depois duma vida inteira em que ambicionaram loucamente a liberdade? Depois de rezar em Getsêmani para que o seu cálice fosse afastado, Jesus bebeu, até ao fim, as gotas mais amargas. E o Apóstolo Paulo, que tão insistente e fervorosamente pediu para que o “espinho” fosse arrancado da sua carne, continuou sofrendo e mortificando-se até ao fim dos seus dias. Os sonhos desfeitos são a legenda da nossa vida mortal.

 

Antes de decidir como havemos de viver num mundo onde as nossas maiores esperanças se não realizam, teremos de perguntar como devemos reagir perante essas circunstâncias.

 

Uma das reações possíveis é a de destilar todas as nossas frustrações num sentimento de azedume e ressentimento. A pessoa que segue este caminho arrisca-se a criar uma atitude endurecida, um coração frio e uma amarga aversão em relação a Deus, aos que a rodeiam e a si própria. Como não pode atacar Deus nem a vida, a sua vingança recalcada manifesta-se na hostilidade para com os outros. Pode tornar-se extremamente cruel e desumana para a família ou para aqueles com quem vive. A sua característica dominante é, geralmente, a mesquinhez. Não gosta de ninguém, nem pretende que gostem dela; não confia em ninguém, nem ousa esperar a confiança dos outros. Acha defeitos em tudo e em todos, e constantemente se lamenta.

 

Esta reação envenena a alma e fere a personalidade; magoa mais ainda quem a tem do que aos outros. Os médicos dizem que certas doenças como o artritismo, as úlceras e a asma, são muitas vezes alimentadas por ressentimentos amargos. A medicina psicossomática, que trata dos males originados pelas doenças mentais, mostra como a deterioração física pode ser resultado de ressentimentos.

 

Uma outra reação muito vulgar nas pessoas que experimentam uma grande decepção é a de se concentrarem completamente em si próprios e tornarem-se absolutamente introvertidas. Ninguém tem licença de entrar nas suas vidas e negam-se a entrar na vida dos outros. Estas pessoas desistem da luta pela vida, perdem o interesse de viver e tentam fugir colocando o seu espírito num transcendente estado de fria indiferença. A palavra que melhor as descreve é a do desapego. Demasiadamente desinteressadas para poderem amar e demasiado insensíveis para odiar; demasiadamente desapegadas para serem egoístas e demasiado apáticas para serem generosas; demasiadamente indiferentes para sentirem a alegria; demasiadamente frias para sentirem o desgosto, nem estão vivas, nem estão mortas: simplesmente vegetam. Os seus olhos não vêem as belezas da natureza, os seus ouvidos não ouvem os sons majestosos duma boa música e nem sequer as suas mãos sentem a doçura da pele macia duma criança. Na vida delas nada há de estimulante; apenas o curso monótono da existência. As esperanças destruídas emprestam-lhe um cinismo destrutivo, que foi assim descrito por Omar Khayyam:

 

A Esperança terrena, a que os homens dão o coração,

Se volverá em cinzas, embora floresça; e assim

é corno a neve na poeirenta Face do Deserto

que brilha pouco tempo - e se desfaz.

Rubáiyát of Omar Khayyám, Estância XVI, Edward Fitzgerald.

 

Esta reação baseia-se numa tentativa para fugir à vida. Os psiquiatras dizem que os indivíduos que tentam fugir à realidade enfraquecem de tal maneira a sua personalidade, que esta acaba por desaparecer. É urna das origens da esquizofrenia.

 

Uma terceira atitude que as pessoas assumem para reagir às decepções da vida é a de adaptarem uma filosofia fatalista, decidindo que tudo o que acontece é porque tem de acontecer e que todos os acontecimentos são necessariamente determinados de antemão. No fatalismo tudo está já destinado e a nada se pode fugir. As pessoas que adaptam esta filosofia caem na resignação absoluta perante aquilo que consideram o seu destino e sentem-se corno órfãos desamparados lançados na imensidade do espaço. Corno não acreditam na liberdade do homem, não tentam sequer discutir ou decidir, e esperam passivamente que forças externas decidam por elas. Nunca tentam com energia modificar as circunstâncias, pois crêem que estas, corno nas tragédias gregas, são dirigi das por forças irresistíveis e incontroláveis. Alguns fatalistas são pessoas religiosas que consideram Deus corno O que delibera e regula o destino. Um dos nossos hinos cristãos exprime em verso esta maneira de ver:

 

Por negro o meu caminho, ou triste o que me cabe

devo estar tranqüilo e sem murmurar.

Mas antes balbuciar a oração que Deus ensinou

Faça-se a tua vontade.

 

Como os fatalistas consideram a liberdade como um mito, rendem-se incondicionalmente a um deternismo paralisante e concluem que todos somos:

 

Peças soltas dum Jogo Divino

Sobre um tabuleiro de dias e de noites...

Rubáiyát of Omar Khayyám, Estância LXIX.

 

e que nada temos a recear quanto ao futuro porque:

 

A Mão escreve; e não pára

depois de escrever; nem toda a vossa Piedade ou vosso Entendimento

conseguirá fazê-la riscar meia linha,

nem todas as vossas lágrimas apagarão uma Palavra escrita.

Rubáiyát of Omar Khayyám, Estância LXXI.

 

Quando alguém cai nas areias movediças do fatalismo, fica intelectual e psicologicamente sufocado. Porque a liberdade faz parte da própria essência humana, quando o fatalismo a nega, deixa de ser um homem para se tornar num fantoche. Tem decerto razão quando afirma que não existe a liberdade absoluta, e que esta é sempre exercida no contexto duma estrutura predestinada. A experiência vulgar ensina-nos que um homem pode ir pelo Norte de Atlanta para Washington, ou pelo sul de Atlanta para Miami, mas não a esta última pelo Norte, nem a Washington, pelo sul. A liberdade está sempre dentro do contexto do destino, mas há liberdade. Somos, simultaneamente livres e predestinados. A liberdade é o ato de deliberar, decidir e reagir, dentro da nossa natureza determinada. Embora o destino possa impedir a nossa ida a qualquer Espanha sedutora, temos, contudo, a capacidade de aceitar esse desapontamento, de agir em conformidade e de proceder em relação ao próprio desapontamento. O fatalismo, ao invés, anemia o indivíduo e faz dele um incurável inadaptado à vida.

 

Além disso, o fatalismo baseia-se numa inaudita concepção de Deus, pois atribui à sua vontade tudo o que acontece de bom ou de mau. Uma religião sã não aceita a idéia de que Deus quer o mal. Embora Ele o permita na medida em que preserva a liberdade ao homem, Deus não faz o mal. Há sempre uma intenção naquilo que se quer, e pensar que Deus quer que uma criança nasça cega ou que um ser humano seja destruído pela loucura, é uma pura heresia que apresenta Deus mais como um demônio do que como um Pai carinhoso. Adaptar o fatalismo como meio de enfrentar sonhos desfeitos é tão perigoso e tão trágico como adaptar o rancor ou o afastamento.

 

Qual será então a resposta? A resposta é a voluntária aceitação das circunstâncias adversas e indesejáveis, mesmo quando agarrados a uma radiosa esperança, a aceitação dum desapontamento finito, mesmo quando aderimos a uma esperança infinita. Isto não significa a aceitação sombria e amarga do fatalismo, mas a atitude assumida segundo as palavras de Jeremias: “Eis o meu mal e eu o suportarei” (Jeremias 10:19).

 

Deveis encarar honestamente as vossas desilusões; tentar escapar-lhes, afastando-as do vosso espírito, é um método que pode provocar uma repressão psicológica muito grave. Perante a vossa consciência colocai o insucesso e olhai-o bem de frente. Perguntai em seguida a vós mesmo: “Como poderei transformar este “passivo” em “ativo”? Prisioneiro duma apertada cela romana ou impedido de chegar à Espanha da vida, como procederei para transformar estes muros de desonra em porto de sofrimento redentor?” Quase tudo o que nos acontece pode ser tecido nos desígnios de Deus. Poderá desenvolver os nossos dons de simpatia; poderá talvez quebrar o nosso amor próprio. A cruz, criada pela maldade dos homens, foi tecida, por Deus, na Sua obra da redenção do mundo.

 

Muitas das mais influentes personalidades do mundo trocaram os seus espinhos por coroas. Darwin, que sofria duma periódica doença física; Robert Louis Stevenson, atacado de tuberculose; e Hellen Keller atingida pela cegueira e pela surdez, não reagiram com amargura ou fatalismo, mas conseguiram, pelo exercício dinâmico da sua vontade, transformar circunstâncias negativas em afirmações positivas. Podemos ler na biografia de George Frederick Handel:

 

“Tanto a saúde como os bens de Handel tinham chegado à máxima decadência. Já estava, então, completamente paralisado do lado direito e o dinheiro desaparecera. Os credores assediavam-no e ameaçavam-no com a cadeia. Em determinada altura, esteve quase a desistir da luta, mas depressa readquiriu novas forças e compôs a maior das suas obras, a epopéia O Messias”.

 

O coro do Aleluia não foi concebido dentro de nenhuma “vila” isolada de Espanha, mas numa cela estreita e pouco apetitosa. Como é vulgar sentir o desejo enorme de alcançar a Espanha, e ficar retidos numa prisão romana! Mas é, menos vulgar porém, saber aproveitar os destroços dos nossos sonhos e aplicá-los de forma a servirem para os desígnios de Deus! E, ainda, quantas vitórias sobre as nossas próprias almas e sobre as nossas situações pode resultar duma atitude enérgica e digna!

 

Nós, os negros, há muito que sonhamos com a liberdade e, no entanto, continuamos fechados na opressiva cadeia da segregação e da discriminação. Deveremos reagir com rancor ou cinismo? Decerto que não; isso destruiria e envenenaria a nossa personalidade. Deveremos resignarmo-nos à opressão, convencidos de que ela representa a vontade de Deus? De maneira nenhuma; pois que essa atitude é blasfema e atribui a Deus o que é do diabo. Cooperar passivamente com um sistema injusto faz com que o oprimido seja tão mau como o opressor. A atitude mais fecunda é a de nos mantermos firmes e corajosos, e a de tentarmos avançar com determinação e sem violência por entre os obstáculos e as contrariedades, aceitando as decepções e nunca abandonando a esperança. A recusa firme de nos rendermos talvez alcance a satisfação completa do nosso desejo de liberdade. Enquanto somos ainda prisioneiros da segregação, devemos perguntar: Como posso mudar o “passivo” em “ativo”?

 

Se reconhecemos a necessidade de sofrer por uma causa justa podemos talvez atingir a nossa total dimensão humana. Para nos guardarmos da amargura, precisamos de ver nas provações desta geração a oportunidade para nos transfigurarmos, a nós próprios e à sociedade americana. O nosso sofrimento presente e a luta não-violenta para a libertação pode talvez oferecer à civilização ocidental o dinamismo espiritual necessário para sobreviver.

 

Muitos de nós hão de morrer sem terem visto realizada essa libertação, mas devemos continuar a seguir o rumo traçado. Aceitemos o desapontamento finito, mas nunca percamos a esperança infinita. Só assim conseguiremos viver sem o peso do azedume e sem o escape do ressentimento.

 

Foi este o segredo da sobrevivência dos nossos antepassados escravos. A escravatura era um negócio baixo, reles, e desumano. Quando traziam os escravos de África, arrancavam-os às famílias e amarravam-os com correntes aos navios, como animais. Nada de mais trágico do que ser separado da família, da língua e da raiz. Os maridos eram muitas vezes separados das mulheres e os filhos afastados dos pais, e quando as mulheres eram forçadas a satisfazer as necessidades biológicas dos seus senhores brancos, os maridos-escravos viam-se impossibilitados de intervir. Mas, apesar destas crueldades sem nome, os nossos antepassados sobreviveram. Estes homens e mulheres corajosos, à medida que as manhãs se seguiam oferecendo sempre a mesma paisagem das longas filas do algodão, o calor sufocante e o chicote do feitor, sonhavam, esperançados, com dias mais risonhos. Não tinham outra alternativa além da de aceitarem o fato da escravatura, mas continuavam tenazmente agarrados à esperança da libertação. Numa situação aparentemente desesperada, cultivavam nas suas almas um otimismo criador que os fortalecia, e a sua vitalidade profunda transformava a sombra da frustração em luz de esperança.

 

Voei pela primeira vez de Nova York para Londres num quadrimotor que, então, precisava de nove horas e meia pelo mesmo vôo que hoje o avião de jacto faz em seis horas. Quando regressava aos Estados Unidos, informaram-me de que o tempo de vôo seria de doze horas e meia. Se a distância era igual, porque seriam essas três horas a mais? Quando o piloto entrou na cabina a fim de cumprimentar os passageiros, pedi-lhe que me explicasse essa diferença. “É preciso contar com os ventos”, disse-me ele, “quando saímos de Nova York há uma corrente forte a nosso favor e quando regressamos dá-se o contrário. Mas não se assuste” acrescentou, “estes quatro motores agüentam bem os ventos”. Também nas nossas vidas há correntes de alegria, de triunfo e satisfação, que nos favorecem, mas noutras ocasiões há os ventos do desapontamento, da tristeza ou da tragédia, que obstinadamente nos empurram em sentido contrário. Iremos nós consentir que esses ventos adversos nos vençam na viagem através do Atlântico poderoso da vida, ou serão os nossos motores espirituais capazes de nos agüentar, apesar das correntes contrárias? A nossa recusa de parar, a nossa “coragem de ser”, a nossa determinação de continuar “apesar de”, são tudo manifestações da imagem divina que está dentro de nós. O homem que percebe isto sabe que nenhum fardo o pode abater e que nenhum vento contrário poderá destruir a sua esperança. Suporta tudo o que lhe acontece.

 

O Apóstolo Paulo possuiu, com certeza, este tipo de “coragem de ser”. A vida dele foi uma série contínua de desapontamentos. De todos os lados falhavam os projetos e se desfaziam os sonhos. Projetou ir a Espanha, e ficou preso em Roma; desejou ir à Bitínia, e foi desviado para Tróade; a sua generosa campanha missionária por amor de Cristo foi marcada “quando em viagem, pelos perigos dos rios, dos ladrões, dos da minha raça, dos gentios, da cidade, do deserto, do mar e entre os falsos irmãos” (2ª Coríntios 11:26). Deixou-se ele acaso dominar por essas condições? “Sei muito bem contentar-me com aquilo que tenho” (Filipenses 4:11), testemunhou. Não porque fosse complacente; nada da sua vida o caracteriza corno tal. Em Decline and Fall of the Roman Empire, Edward Gibbon narra:

 

“Paulo contribuiu mais para promover a idéia da independência e da liberdade do que qualquer outro homem que tenha pisado o solo ocidental”. Seria isto complacência? Corno aprendera a distinguir a tranqüilidade do espírito das circunstâncias acidentais exteriores Paulo soube, no meio das decepções da vida, manter-se sempre firme e nunca desanimar.

 

Todo aquele que faz esta magnífica descoberta é tal como Paulo, um recipiente da tal paz autêntica “que vai além de todo o entendimento” (Filipenses 4:7). A paz, como geralmente o mundo a entende, existe quando o céu está sem nuvens e o sol brilha em todo o seu esplendor; quando a carteira está cheia; quando não sentimos dor nem sofrimento no corpo ou na alma e quando conseguimos alcançar as costas de Espanha; mas não é essa a paz verdadeira. A paz a que Paulo se refere é a da tranqüilidade do espírito por entre os terrores da aflição, a calma interior no meio da tempestade e do uivar dos ventos. Facilmente compreendemos o que significa a paz quando tudo corre bem e nos sentimos “na mó de cima”, mas ficamos completamente desorientados quando Paulo nos fala daquela paz autêntica que existe quando estamos na “mó de baixo”, quando os ombros se vergam sob o peso do fardo, quando a dor invade o corpo, quando nos sentimos encerrados entre os muros duma prisão, ou quando o desapontamento é inevitavelmente real. A paz verdadeira é a calma que excede toda a compreensão e toda a explicação, a paz no meio da tempestade, a tranqüilidade perante o desastre.

 

É pela fé que recebemos o legado de Jesus: “Dou-vos a paz, dou-vos a minha paz” (João 14:27). Paulo e Filipe, encarcerados numa torre sombria e solitária cantavam com alegria os cânticos de Sião, apesar dos corpos doridos e ensangüentados, dos pés acorrentados e do cansaço do espírito. Os primeiros cristãos lançados às feras no circo, ou junto do cepo onde iam ser decapitados, rejubilavam por serem dignos de sofrer por amor de Cristo. Os escravos negros, tendo nas costas as marcas vivas das chicotadas, cantavam triunfalmente: “Depressa me libertarei deste fardo tão pesado”. Todos estes exemplos são os exemplos da paz que vai além de todo o entendimento.

 

A nossa capacidade para encarar produtivamente os sonhos desfeitos é determinada, em última instância, pela nossa fé em Deus. Uma fé genuína incute-nos a certeza de que, para além do tempo, existe um Espírito Divino e, para além da vida, existe a Vida. Por desanimadoras ou catastróficas que as circunstâncias se apresentem, sabemos que não estamos sós, e que Deus está conosco nas celas mais recônditas e mais estreitas da vida. E mesmo que ali morramos sem receber a promessa terrena, será Ele que nos conduzirá pelo caminho da morte até que alcancemos finalmente a inefável cidade que criou para nós. Esta vida terrestre não esgota a força criadora de Deus, nem encerra o seu amor magnífico nas muralhas limitadas do tempo ou do espaço.

 

Não seria estranhamente irracional ou absurdo um universo em que Deus, por último, não juntasse a virtude à plenitude, e a morte apenas fosse a cega vereda que conduziria ao nada absoluto? Foi através de Cristo que Deus nos libertou do aguilhão da morte. A nossa vida terrestre é o prelúdio dum novo despertar, e a morte é a porta que se abre para a nossa entrada na vida eterna. É a fé cristã que nos faculta a possibilidade de aceitarmos o que não pode ser modificado, de enfrentarmos as decepções e os desgostos, de suportarmos a dor mais intensa, sem nunca abandonar o sentimento da esperança. Todos nós sabemos, assim como Paulo o testemunhou, que tanto na vida como na morte, tanto em Espanha como em Roma, “Deus faz concorrer todas as coisas para o bem dos que O amam e daqueles que, segundo os seus desígnios, são chamados” (Romanos 8:28).